A sessão de cinema ainda nem a meio
tinha chegado e António Neves já suspirava de tédio. Quando aparece a cena em
que a personagem principal se reforma aos sessenta e seis anos ele desiste e
tenta dormir.
Ao primeiro ronco, sente um cotovelo a
bater-lhe, acompanhado de uma voz:
- Acorda vozinho! Estás a fazer barulho!
Sobressaltado, António Neves acorda, e
meio perdido exclama – Ah, ah, o quê? – e apercebe-se do sítio onde está. Foca-se
novamente no ecran e vê outra cena, desta vez da personagem secundária a ser
reformada condignamente aos sessenta e seis anos - “Poça, estou farto disto!” –
pensa. Depois, baixinho diz:
- Rapazes, espero por vós lá fora.
Quase uma hora depois, no pano branco
aparece a palavra “Fim”, acendem-se as luzes e as pessoas começam a abandonar a
sala. Toninho e Nuninho deixam-se estar sentados e são os últimos a sair. Dirigem-se
para António Neves, o bisavô, que esperava no exterior do “Cine-teatro Alves da
Cunha”.
- Então vozinho, não estavas a gostar do
filme?
- Não, rapazes! Nunca gostei de filmes
de ficção científica. Se fosse uma cowboyada…isso é que eu gosto!
- Não gosto! – respondem os bisnetos ao
mesmo tempo.
- Ah, isso sim, são filmes! Aqueles
índios e cowboys na Assembleia da República aos tiros uns aos outros…! – e é
interrompido por espasmos, sintoma de uma doença grave e galopante, detectada há
pouco tempo.
No país de António Neves, que ainda não
é Portugal (mas por pouco tempo, digo eu), as pessoas reformam-se
automaticamente, quando morrem, a título póstumo. Mas quando a morte é
repentina, sem causa aparente, por suicídio ou provocada por acidente automóvel
em que o falecido é culpado, se não for devidamente justificada, a reforma para
o defunto é posta em causa e faz todo o sentido…há por aí muito “chico-esperto”
a “falecer-se” de forma danosa para o Estado!
Quanto a António Neves, oitenta e nove
anos e viúvo há dois, altura em que a esposa se reformou, sempre foi cumpridor
naquilo que são as suas obrigações, para assegurar uma morte confortável e
sossegada. Como a sorte, mais tarde ou mais cedo, bate à porta dos correctos, a
António Neves, foi diagnosticada uma doença rara que lhe dava mais seis meses de
vida.
Foi uma alegria lá em casa, quando
António Neves, mais para lá do que para cá, anuncia entusiasmado aos filhos,
netos e bisnetos:
- Vou morreeeeer!
- Quando? – perguntam alguns.
- Daqui a seis meses no máximo. –
responde o patriarca da família Neves.
- Que bom, pai! – comenta o filho mais
velho – Seis meses dá para tratar da reforma com calma.
Com a serenidade devida, que os seis
meses lhe proporcionavam, António Neves tratou de toda a papelada e selos
necessários. Na última ida à Segurança Social, vindo de uma consulta no
Hospital, depois de um dia de trabalho, ficou acertada com a senhora que o
atendeu a data do seu falecimento…seria entre o dia 05 e 28 de Maio. Antes de
sair do balcão, António Neves ouve as últimas palavras da funcionária:
-…e se ao fim de cinco dias úteis após o
seu falecimento, não receber o papelzinho da Segurança Social, passe por cá.
- Muito bem! – responde simpático,
António Neves, apesar da debilidade física.
No dia 15 de Maio, António Neves falece,
Nuninho e Toninho comentam entre si – Ainda bem, o vozinho já merecia a
reforma. Foram setenta e oito anos a trabalhar!
Passados cinco dias úteis, ao caixão não
chega nenhum papelzinho, mas ao sexto, António Neves é enviado para o Céu.
Quando se apercebe onde está, pensa – “Aqui não devo precisar de nada, dizem
que é o Paraíso, que se lixe o dinheiro da reforma!”. Mal termina este
pensamento é abordado por um santo, que enquanto lhe entrega um uniforme,
explica-lhe:
- Sabe Sr António, aqui o senhor vai ter
que continuar a trabalhar por mais dois anos. O Altíssimo não soube governar o
Céu e estamos debaixo de um resgate, encabeçado pelo Diabo!
- O quê, depois de morto vou ter que
continuar a trabalhar?! – questiona António Neves, completamente aparvalhado.
- Pois é, isto aqui está infestado de
Querubins e Serafins! Enquanto o Senhor não fizer a reforma do Céu, nós, os
anjinhos, vamos continuar a trabalhar!