domingo, 25 de janeiro de 2015

Febre de sábado à tarde

Anos de matrimónio, e relatos de amigos em idêntico estado civil, fizeram-me compreender que a mulher tem um gosto especial para atribuir ao homem tarefas que não nos agradam! Tendo noção desta característica feminina, o homem pode ser mais feliz na coligação marido/mulher.
- Vai ás compras.
Sempre que esta frase me é dirigida pela Cristina, geralmente ao sábado, faço uma expressão de desagrado, mas todo o meu interior é luz de alegria e satisfação. Adoro ir ás compras, como adorava ir à discoteca quando era adolescente…mas se mostrasse alegria nesta tarefa, certamente deixava de a executar.
- Outra vez! Já estou farto!
(na verdade estava mortinho para ir ao hipermercado)
- Pega.
(E passa-me a lista para a mão)
- Fogo, é para vir carregado!
Perante tanta dificuldade demonstrada, a Cristina sorri e diz-me:
- E para a próxima vais tu outra vez ás compras.
Neste momento estou nos píncaros do cinismo, sorrindo por dentro e quase chorando por fora.
Num pormenor de classe, que a minha senhora ainda não percebeu, eu vou-me arranjar (por-me bonito), antes de sair.
Entro no carro e olho para a lista de compras, da mesma forma que olhava para um “flyer” a anunciar uma festa numa qualquer discoteca.
Ligo o carro, arranco e vou metendo as mudanças razoavelmente “puxadas”, possuindo-me de um espírito jovem e rebelde q.b.
Chego, entro no parque de estacionamento e faço o óbvio, estaciono, mas com um pormenor de sofisticação, braço de fora, apesar das dificuldades que tenho para estacionar só com um braço.
Indiferente ao movimento na porta, avanço e entro no “Pingo Doce”, o que nem sempre acontecia em jovem nas discotecas a abarrotar.
Não tenho nenhum patrocínio desta superfície comercial, mas tal como em jovem gostava de bares e discotecas com um toque de sofisticação, atrai-me o “décor” do “Pingo Doce”, com uma banca de frutos secos à entrada, seguida de uma banca de frutas, mas sem bailarinas em cima a dançar!
Pego em nozes e bananas e passeio-me pelos corredores, mostro-me e vejo quem está. Na fila dos lacticínios avisto uma cara nova, e gira, olho para a lista de compras e não encontro leite, mas arrisco. Aproximo-me do leite meio-gordo, e a miúda, gira ao longe, ao perto era o Quim! Deve ser da idade, começar a ver mal ao longe.
- Olá Quim! Tudo bem?
- Está tudo bem Calheiros! Viste comprar leite?
- Não faz parte da minha lista. Eu é que te vi e vim cumprimentar-te.
(tento disfarçar)
Posta a conversa em dia, afasto-me, preocupado com o pensamento, “Será que as miúdas giras, para quem assobio ao longe, são homens?!”.
Necessitado de um “copo” (na discoteca, procurava o bar com a miúda mais gira a servir para pedir a minha bebida), fui comprar fiambre. Não tinha balcões para escolher, fui ao único que havia.
- Boa tarde! Quero trezentos gramas de fiambre.
- Da pá ou da perna?
Como sempre pedi o Wisk sem gelo, respondo:
- Da perna.
Olho para a lista e não tinha nada em falta, estava na hora de ir embora. Como sempre nos finais de noite, no fim das compras continuo a querer sair o quanto antes. Com a precisão de um “sniper”, estabeleço a relação pessoas/quantidade de compras e decido a melhor caixa – É aquela. Duas pessoas, com um máximo de três produtos.
O troco acaba, quando a pessoa á minha frente está a ser atendida, entretanto chega um ciganinho com uma Coca-Cola.
- É só isso? – pergunto.
- É. – responde-me o miúdo.
- Então passa à minha frente.
- Mãeeeeeeee, paiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, este senhor deixa-nos passar à frente.
Olho e vejo todo o agregado familiar,cada elemento com um carrinho de compras, cheio.Duas horas e meia depois de chegar à caixa, chego a casa.
- Tanto tempo morzinho! Foi dura esta ida ás compras?
- Horrivel! Estou estafado! – respondo.
Encolhendo os ombros, a Cristina diz-me:
- Pois, para a semana tens que ir outra vez!

Fecho a expressão em sinal de aborrecimento, viro costas e afasto-me com um sorriso, ansiando a próxima febre de sábado à tarde!

domingo, 18 de janeiro de 2015

Je suis Anjinho

Bem cedo, antes das oito da manhã, saio de casa. Destino, o costumeiro de segunda a sexta, o local de trabalho. Antes disso alguns procedimentos e  reacções habituais sucedem-se, começando pelo tocar do despertador, de seguida odeio-o por isso durante breves segundos, mas sem nunca me passar pela cabeça “desfazê-lo”, apenas por não me agradar, levanto-me e tomo o pequeno almoço. Até aqui, tudo dentro da legalidade, até ao momento em que saio de casa… continuo com o velho hábito conservador de trancar a porta e manter a minha casa protegida!
Como ando “desalinhado” da corrente imposta do “Tens Mais de Seis Anos Mas Tens Que Continuar a Acreditar no Pai Natal”, estou identificado pela PPC (Polícia do Politicamente Correcto), como prevaricador e tenho um agente à porta de casa a vigiar-me, como se deviam vigiar terroristas, a obrigar-me a cumprir a lei…ou seja, deixar a porta aberta, com consequências severas, mas só para mim, cidadão comum!
Ao final da tarde, no regresso a casa, ao passar junto da estação dos comboios, vejo um grupo de cidadãos romenos, adultos e crianças, daqueles que “trabalham” e lutam por uma vida melhor, mendigando e roubando, passando esse saber secular aos mais novos. Apesar de tudo, o meu sentimento “Tuga” de anjinho e de comiseração pelos desgraçados, fez-me soltar um condescendente, “Coitadinhos!”.
Chego a casa, estaciono, saio do carro e o agente da PPC olha-me como se olha para um malandro. Para não deixar dúvidas levanto o braço onde tenho um saco com algumas compras e digo-lhe, a medo, “Paguei tudo!”.
A única coisa boa de sair de casa e deixar a porta aberta é que quando chego não tenho trabalho a abri-la…nem os outros.
Entro e pouso as compras na cozinha. Vou para a sala e encontro um grupo, homem, mulher e crianças, todos morenos e feições bem diferentes das dos “meus”. O “à vontade” do grupo era tão grande, numa casa que não era a deles, que pensei que era a família do meu primo José Alberto, que ficam todos muito morenos no Verão. Perspicaz como sempre sou, para tirar dúvidas, disse – Ó José Alberto, tira os pés todos sujos de cima do sofá!
Perante a falta de resposta, noutro golpe de perspicácia, pensei, “Este não é o meu primo. E aquela mulher e as meninas, com lenço na cabeça, não são a mulher e as filhas!”
Nos tempos em que trancava a porta de casa, só lá entrava quem eu convidava e havia regras, em que eu tinha o dever de ser hospitaleiro e o convidado tinha que respeitar três regras básicas - não alterar a decoração de casa, não parti-la e respeitar quem lá vive…de resto, toda a diversidade era bem-vinda.
Ainda com alguns resquícios desses tempos, em que o meu sobrinho dentro de minha casa tirava o chapéu, pedi à senhora e ás meninas que tirassem o lenço. Gritaram coisas que não percebia e o homem atirou-me um bibelot, muito bonito, que tinha comprado no dia anterior, que só não me acertou na cabeça, graças à minha boa esquiva.
Saí de casa e contei o sucedido ao agente da PPC, que me respondeu – Claro, você insultou-o! Merecia era levar com uma pedra no meio da testa. A sua sorte é que são boa gente!
Regressei para dentro e com o passar do tempo sentia-me cada vez mais um estranho em minha casa. Os meus amigos deixaram de aparecer, primeiro aqueles que gostavam de falar livremente e com o tempo, todos os outros, não aguentando a aplicação da sharia (em minha casa) impondo comportamentos medievais e o tratamento subalterno dado ás mulheres da família lá instalada.
Queimaram os meus livros, partiram a televisão e o meu rádio, coisas do diabo! Agora passo o tempo a observá-los e a trabalhar para lhes dar de comer…é a vida!
A mulher deu novamente à luz, um rapaz, a alegria suprema do pai, já que as filhas eram peças acessórias usadas apenas para o servir! O agente da PPC, apressou-se a dizer que como a criança nasceu em minha casa, a minha casa ia passar a ser dela também.
- Vai ser educada por mim, segundo os Direitos Humanos Universais? – pergunto, para me certificar que a criança iria ter uma educação que validasse o sentimento de pertença ao sítio onde nasceu.
- Nem pensar, é árabe e muçulmano e vai ser educado de forma intolerante, como se vivesse na “casa” dos pais dele! – responde o agente.
Desgastado, vou para a varanda ver quem passa e avisto um amigo de infância, o Alain, que saúdo, com uma abordagem jovem:
- Olá Alain, tudo baril?
Antes de ouvir a resposta do meu amigo, sou puxado para dentro da sala pela família invasora, que me grita em uníssimo:
- TU DISSESTE QUE ALÁ É UM BARRIL??!!!

Sem direito a defesa fui condenado a mil chicotadas, aplicadas em suaves doses de cinquenta por semana…porque é tudo boa gente!
Je suis Anjinho,nous sommes Anjinhos!

domingo, 4 de janeiro de 2015

Revelação

Depois de anos de luta da sociedade ocidental pelo direito à “privacy”, esta deu uma cambalhota, principalmente com as redes sociais, em que a maioria reivindica para si o direito a expor-se, fugindo da privacidade como o “diabo da cruz”, como se ela fosse o gordo tótó da escola, que tínhamos vergonha de ter como amigo ou a gorda, que tinha amigas, apenas por ser a única que tinha carro!
A mim não me interessa se alguém está entusiasmado ou a sentir-se triste, se comeu arroz com batatas ou batatas com arroz, se vai fazer chichi ou acabou de fazer um cócó, não me interessa anunciar uma tragédia e receber “gostos”, para alimentar egos,…é uma chatice o desequilíbrio!
Tento escapar da forma que posso a esta maré de exposição, por opção e para esconder o que não interessa ser sabido…custa manter uma imagem de credibilidade, mesmo sem saber se a tenho, mas continuo a crer que sim, fruto de um elogio de uma rapariga em 1998. Como pouca coisa mudou na minha vida, presumo que o elogio deve manter -se actual, tal como os comentários da minha mãe e não tendo em conta algum queixume da minha senhora, apesar de eu fazer um pão-de-ló húmido, para lhe adoçar o “bico”. O pão-de-ló só saiu húmido uma vez, mas nunca “postei” o facto no FaceBook, e tenho a certeza que seria um dos comentários mais interessantes do dia…dando azo a opiniões, pareceres, “gostos” e, quiçá, alguma dica para o pão-de-ló sair húmido mais vezes.
Apesar das minhas façanhas tediosas, dignas de exposição e capazes de se gladiarem, taco a taco, com a fotografia de uma omolete, almoço de alguém, continuo a não ir na “onda”.
Raríssimas coisas partilho com o “Mundo”, apenas algumas com os amigos, outras são simplesmente sigilosas…ou eram!
O ano de 2015, que prometia ser normal, atirou-me para o abismo. Desde há anos, sempre que necessário, sou obrigado a estender a roupa no estendal. Com vergonha e para nunca ser visto, acordava às seis da manhã, antes do padeiro passar, e, coberto pela noite, desempenhava esta tarefa doméstica no segredo dos Deuses. Em conversa com amigos, assegurava que no máximo “arrancava” a roupa do estendal…nunca na vida estender!
1 de Janeiro de 2015, seis e meia da manhã, um frio de rachar. Estou próximo do estendal, o padeiro não era preocupação, porque tinha avisado que nesse dia não iria haver pão, mas esqueci-me de que o meu vizinho, ainda jovem, tinha saído para a noitada de Passagem de Ano. Estico a segunda toalha, vou a colocar a primeira mola e sinto um “flash”, acompanhado de um:
- Bom dia, vizinho! Está a estender roupa!
(Fui apanhado e fotografado)
Com excelente capacidade de improviso, respondo:
- Nããããão, isso é para mariquinhas! Vim fumar um cigarro! – e sopro no ar, saindo fumo de frio pela boca.
O meu vizinho nunca me viu a fumar e apanhou-me a estender roupa e fotografou.

Antes que ele ponha a fotografia no FaceBook, eu, em vez de anunciar que “estou a sentir-me humilhado”, assumo no Blogue, “Eu estendo roupa!”