Em 1983, com nove anos a
caminho dos dez, mantinha a minha colecção de selos, abastecida na
correspondência recebida pelo meu avô no seu escritório, e desisti, ao fim de
três semanas, da minha colecção de numismática depois de surrupiar todas as
moedas diferentes que encontrei na carteira dos meus pais e familiares.
No domingo de Páscoa desse ano acordei cedo, sem despertador e sem os meus pais me chamarem, tão cedo que a
emissão da RTP ainda não tinha começado! Acordei com um objectivo a tilintar na
minha cabeça, bater o recorde do ano anterior de quinzes beijos na cruz do
compasso.
Sim, com nove anos a
caminho dos dez, abaixo de mim tinha um primo e o meu irmão, e acima, muitos
mais primos, tios e tias, avós e tios-avós e bisavós, parecia que a minha família era a população
do planeta e na casa de cada um deles podia beijar o
compasso.
Como em todos os domingos,
almoçávamos nos meus avós (pais da minha mãe), e desde há duas semanas, que bem
cedo, eu e um dos meus primos, instalávamos nas traseiras da casa, uma banca
onde vendíamos iogurtes e caramelos a quem passa-se para a missa, sem a
concorrência do comércio local, sempre fechado, e das grandes superfícies, que
ainda não existiam...sem concorrência praticávamos o preço que queríamos. Lembro-me
de termos vendido um caramelo a dois escudos e cinquenta centavos...estávamos
transformados em vendilhões do Templo!
Nessa manhã, depois da
banca montada, dois extintores ao alto e uma tábua, o meu primo José Alberto
expõe os iogurtes e pede-me para ir buscar os três caramelos que tínhamos em
stock. Feito desentendido, faço de conta que os vou buscar e quando regresso,
exclamo:
- Desapareceram!
Assaltaram o nosso armazém.
O nosso armazém era uma
beira debaixo das escadas, que dava acesso à cozinha, e os caramelos foram
comidos por mim. A sociedade acabou, sendo eu vítima da estratégia comercial em
voga na altura, os “stocks” (aos quais eu não resistia), quando eu estava
talhado para o “Just in time”.
Esta minha postura
comercial, a do “Surrupio”, veio a ser moda poucos anos depois entre os empresários portugueses, com a entrado do país na CEE.
Desfeita a sociedade,
corro para a casa da minha avó (mãe do meu pai) onde iria dar o meu primeiro
beijo na cruz. O segundo seria dado na casa ao lado, na minha tia Mina, irmã da
minha avó (mão da minha mãe), desceria a rua e parava a meio, na casa do
Miguel, onde actuava como infiltrado naquela família, e terminaria a rua com o
quarto beijo na casa de outra tia. Regressava a casa dos meu avós e aí dava o
quinto beijo. A estratégia estava montada de forma que o décimo sexto beijo, e
novo recorde, fosse dado na casa dos meus bisavós, pais da minha avó, mãe da
minha mãe, em Lousado.
Instalado na sala, ao lado
da minha avò (mãe do meu pai), só pensava na menina de quem gostava e pela qual
andava a treinar “o beijar”, principalmente com almofadas, mas também com o
braço e a maçaneta da porta do meu quarto!
Ouvem-se os sinos e o
pelotão pascal irrompe pela casa dizendo “Aleluia, aleluia,...”, dando a cruz a
beijar. Eu, com o pensamento na menina, dou um beijo de língua nos pés de Cristo.
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