domingo, 28 de dezembro de 2014

Ternura dos quarenta…e um

Era de manhã e lá fora fazia frio, mas não chovia. Iria confirmar estas condições meteorológicas, depois de me levantar, após ter sido acordado pelo toque do telemóvel.
Antes do toque, estava no estado idílico, que eu baptizei de “Estado 2+1”,que consiste no binómio quentinho/fofinho (2…), enfiado na cama, com o bónus de um sonho espectacular(…+1).
O binómio era-me garantido por lençois, fofinhos, e um edredon, de igual adjectivação, e a espectacularidade do sonho era garantida pelo equipamento que eu envergava, verde e branco, do Sporting. Recebo a bola no meio campo, o estádio completamente cheio, gritava pelo meu nome e pelo nome da mãe do árbitro, enquanto corria com a bola nos pés, chuto e é golo, levanto os braços para celebrar a conquista da taça intercontinental pelo Sporting, e…
Trimmmmm, trimmmmm, trimmmmm,
O toque irritante do telemóvel despertou-me do sonho espectacular, quebrando o estado idílico “2+1”, ficando-me pelo binómio Quentinho/fofinho. Estico o braço de debaixo dos lençóis e puxo-o para dentro do “casulo”.
- Estou?! – atendo com a voz sonolenta e melada.
- Parabéns filhinho! Como te sentes no teu primeiro dia a iniciar a “caminhada” para os cinquenta? Charmoso e bonitão?! – pergunta a minha mãe.
Fui apanhado desprevenido pela pergunta, não pelo lado do “charmoso” e muito menos pelo de “bonitão”, mas pelo lado do “a iniciar a caminhada para os cinquenta”. No dia anterior, 26 de Dezembro, tinha feito quarenta e um anos.
Sem saber como me sentia, respondi:
- Sinto-me espectacular!!!
Desligamos. Afinal o aniversário não foi um sonho! Se calhar o jogo também não!
Telefonei ao meu amigo.
- Miguel, ontem marquei um golo pelo Sporting e fui Campeão Intercontinental?
- Ontem fizeste 41 anos. Querias jogar futebol com essa idade? Ganha juízo!
Desliguei e ligo para a minha mãe, tudo debaixo dos lençois para manter, pelo menos, o binómio, já que a realidade custava a compreender.
- Mamã, mas eu não me sinto com idade, ou melhor, sinto-me como se tivesse parado nos 32!
- Pois é filhinho, o tempo corre! Passaram quarenta e um anos desde 26 de Dezembro de 1973 e quarenta um anos e dois dias desde que fui para o hospital para te ter.
Curioso, a única recordação que tenho de mim, antes dos quatro anos, é de estar na barriga da minha mãe e ouvir do lado de fora, “Está frio, vamos despachar este nascimento”. Demorei dois dias para nascer, já pressentia que “frio” não seria coisa agradável.
Saí da cama com o mesmo custo com que saí do ventre da minha mãe!
Enquanto me arranjava, não liguei o rádio, não fosse acontecer como no ano passado, que nas ultimas escovadelas nos dentes, o radialista que estava a passar música “naquela estação” faz uma passagem que nem lembra ao diabo, de Beyoncé passa para Paco Bandeira, o gajo que canta “A ternura dos quarenta”. Decidi antes visionar, pela octagésima terceira vez, “O diário de Bridget Jones”. Tal como ela decidi tomar resoluções, já que o meu aniversário calha sempre no mesmo dia (o 26/12) e sinto-me constantemente a envelhecer, em que apenas durante cinco dias posso dizer que faço anos para o ano!
Para vincar a minha personalidade comecei por uma “não resolução”, vou continuar a ser sportinguista durante 2015; apontei como segunda medida uma “resolução absoluta”, vou cortar um sobretudo em tons de castanho, muito bonito, para ficar mais curto e mais jovem…mais condizente com a minha “estampa”; outra resolução fatal para o primeiro semestre, é perder 715 gramas na zona abdominal, quando é imensamente mais fácil ganhar;…e a minha “derradeira resolução”, nunca antes tomada por manifesto medo, será, começar a mandar um bocadinho cá em casa!

Amigos, se começarem a ver-me pisado na rua, não perguntem. Irei sempre responder que caí a andar de bicicleta!

domingo, 14 de dezembro de 2014

Significantes e significados

Deus, para quem acreditar, fez quase tudo perfeito.
Significante, na sua criação, foi a capacidade de comunicação que deu aos bichinhos, incluindo a Nós, por meio das formas mais simples e básicas como o latir, o miar, o rugir, …, que associadas às reacções dos animais que os emitem, transmitem uma mensagem clara.
O latir insistente do Romeu,
(o meu cão)
quando me vê, movimentando-se de um lado para o outro, nunca na sua vida de canídeo poderá significar outra coisa senão, “Leva-me a passear”, como de igual forma, o latir da Maria,
(a minha cadela, que não se chama Julieta, porque já era o nome da minha gata, antes da chegada da Maria)
sempre bem disposta, quando abre as goelas, afastando o Romeu, significa “Faz-me festinhas...só a mim”, na tentativa de açambarcar todas as atenções só para ela.
Quando ouço um miar esganiçado, associado a um objecto a cair, não tenho dúvidas de que é a Clarinha,
(a outra minha gata)
assustada e a fugir do José António,
(o meu gato)
meiguinho e que não faz mal a uma mosca.
Tudo seria claro no mundo, se não fosse a derradeira distracção de Deus, para quem acreditar, ao criar aquilo que seria a sua “Master Piece”, a Mulher.
Algo faltou nesse ser fantástico, para quem 1+1, geralmente é dois, mas só para chatear, poderá não ser…
Se a Mulher, às vezes,
(muitas vezes)
diz o que não está a pensar, ou pensa o que não está a dizer, espera que o Homem no seu pleno amor adivinhe o que realmente quer… tarefa ingrata para quem 1+1, é sempre igual a 2… sempre… mas mesmo sempre.
Mas se as discordâncias do que a mulher diz e quer dizer, causam transtornos graves apenas ao seu homem, há uma outra espécie, que causa transtornos gravíssimos a toda uma população, como se tem visto no nosso país ao longo das últimas décadas - o Político, que tem um dicionário de significados muito próprios…e não quero crer que tenha sido criação de Deus, para quem acreditar.
Se o Chico, que é um espertalhão, quando mente é chamado de mentiroso, o Político, no parlamento, quando mente com quantos dentes tem, é acusado de estar a dizer “Inverdades”.
Se o Chico, que é um espertalhão, torna a mentir dizendo que estava no café Central, e o Quim diz que o viu no café Papoila, o Chico continua a ser um grande mentiroso. O Político, quando investigado, nunca mente quando ao sítio onde esteve, pode no máximo cometer uma “Incorrecção factual”.
Esta espécie também manifesta comportamentos divinos.
Se o Chico, espertalhão, quando apanha muito sol na moleirinha, desmaia, por isso a sua mãe, em criança, nunca o deixava sair para a rua sem o chapéu, o nosso Presidente da República, aquando das comemorações do 10 de Junho teve uma reacção, que no caso do Chico seria o desmaio, aqui chamou-se de “Reacção Vagal”…e passei a acreditar em Deus!
Mas a culpa é do Empreiteiro…. E é por isso que o Político antecipa todas as promessas. Se o Empreiteiro nunca cumpre um prazo, atrasando e derrapando as obras, a promessa do Político de nunca aumentar impostos, significa, “No próximo mês, temos uma taxa roxa”, e quando a promessa é de aumento só para o ano, significa, “Amanhã temos nova taxa colorida”.

No meio de tanta “Inverdade”, só espero não levar com a taxa lilás! 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O que realmente importa.

Ébola, crise na Ucrânia, o eterno Médio-oriente, EUA, a Mãe Rússia, China,…, notícias que se vão alternando, ou por moda, como o caso das epidemias, nunca “démodé” e sempre boas, como as castanhas quentinhas, pelo alarme que causam, ou, quando o vazio é total, para quem vive das notícias, tem sempre o Mundo Árabe e Israel. Para completar a animação nas redacções, há sempre quem dê uma facada a alguém!
Tudo o que nos é dado a conhecer pelos jornais e pelas televisões, servem para, à noite, alimentar discussões indignadas nas redes sociais, podendo chegar ao insulto, se formos suficientemente interessantes para tal!
Um bom amigo diz-me que nunca se desliga do “Facebook”, com medo de perder o encanto!
Mas nós, aqui no nosso cantinho, desgastamos-nos bastante com aquilo que não podemos mudar e que se passa a milhares de quilómetros de distância, quando ao nosso lado há quem passe fome e privações… mas isto não tem dimensão para discussões que nos façam interessantes aos olhos dos outros!
Apesar da proximidade de quem mora na nossa rua e tem privações que podemos minorar, o que realmente nos interessa e nos preocupa, também não é isto!
Ninguém acorda de manhã a sufocar porque um negro está infectado com ébola em África, nem pesaroso porque o vizinho não tem o que comer ao pequeno almoço… preocupa-nos a proximidade do que nos pode afectar…a Legionella e o ar condicionado no trabalho.
Não sentimos crescer um “galo” na cabeça, porque um Árabe acertou com uma pedra num israelita, mas dá-nos dor de cabeça as filas de trânsito no caminho para o trabalho… queremos lá saber da perseguição feroz da Mãe Rússia a determinados grupos, quando em casa temos a mulher na semana do periodo, na bomba de gasolina ninguém pensa que a China e os EUA, são os maiores poluidores, mas sim que há uns anos atrás enchíamos o depósito por metade do dinheiro…
O que nos preocupa é a nossa vida…ou vidinha, e de todos os males, ou sofro o maior…uma lesão! Onde? Na coxa. Implicações? Não posso jogar à bola.
Foi há seis semanas atrás, no habitual jogo de domingo. O adversário na pequena-área chuta para golo, têm os braços levantados e largos sorrisos antes de a bola passar a linha de golo, eu estico a perna, mesmo sabendo que não conseguiria fazer o “corte”, mas iria impressionar pelo esforço, e sem querer, o meu pé de apoio escorrega, e sem nunca na vida o ter conseguido, faço a espargata, “corto” a bola sem querer, o adversário baixa os braços, perde o sorriso e a minha equipa inicia o contra-ataque.

Fiquei deitado no chão, alheio a todos os sofrimentos do mundo, sem saber como sair daquela posição, onde nunca me tinha visto, e a desejar, não paz para o mundo, mas conseguir recuperar para o próximo jogo!

domingo, 30 de novembro de 2014

Anuidade.

- Quero uma cerveja!
Foi o pedido daquela figura alta, magra e de óculos escuros, que mesmo com os olhos escondidos senti que sorriam.
Eu estava sentado ao lado, ambos ao balcão do café.
- O amigo gosta de cerveja! – digo-lhe, como que querendo descobrir aquela personagem, que nunca vi no café.
- Muito – responde-me.
- Pago-lhe outra. – disse-lhe e de braço em riste virei-me para quem atendia - Menina, mais duas cervejas.
- Não, não. – reponde-me pronto a pessoa, baixando-me o braço.
Saca de agenda, já de 2015, e aponta algo no mês de Novembro.
- Zé, eu sou o Zé! – apresento-me - E o amigo?
- Eu hoje sou o António e volto a sê-lo no dia 30 de Novembro de 2015. Se por acaso amanhã me encontrar, teremos o mesmo nome! Amanhã sou o Zé.
Intrigado, quis saber ainda mais sobre aquela figura caída do céu.
- E então, mora por cá?
- Sim, já há três anos.
Depois de devidamente explicado, fiquei a saber que o António é meu vizinho. Mora em frente a mim, onde dorme uma vez por ano. Fiquei a saber, também, que gosta de andar de bicicleta e de jogar futebol…tal como eu!
- Logo quer vir jogar à bola? Falta-nos um. – convido-o, como forma de o integrar no meio.
- Aaah, que pena! Gostava, mas já joguei hoje de manhã.
- Aaah! Então conhece gente aqui! – constato, com alguma alegria.
- Sim, sim, e costumo estar com eles…no dia 30 de Novembro de todos os anos, da parte da manhã, para jogar à bola, e no primeiro sábado de Setembro, para um passeio de bicicleta, que dura o dia todo…até me farto de os ver!
- E como é que eles te conhecem?
- Na bola, por António, no passeio de bicicleta, por Fredo.
Num instante a expressão serena de (neste dia) António, esfria.
- Passa-se alguma coisa, amigo? – pergunto.
- Aquele ali! - com o dedo a apontar para o exterior do café, onde passava o tipo dos seguros, e prosseguiu – Encontrei hoje uma carta, colocada por baixo da minha porta a informar que vou estar isento do pagamento anual do seguro do carro, por dois anos…não tenho acidentes, dizem que é um bónus! Pudera, eu só pego no carro uma vez por ano. Tinha uma vida preenchida, com acontecimentos anuais todos os dias, agora fico sem ter o que fazer no dia 29 de Agosto!
- Mas o que faz nesse dia, António? – pergunto.
- Para começar, nesse dia sou o Mendes. Pagava o seguro!
Neste momento senti o António perdido.
- Ó António, só se quiser combinar para esse dia uma cervejinha…aqui no café!
- Não pode ser, já venho aqui neste dia. Pode ser um pingo, no café ao lado?
- Está combinado!
- E nesse dia sou o Mendes. Não se esqueça!
A conversa foi-se desbobinando, estranhamente, de forma natural e nesta figura de hábitos peculiares invejei o facto de a sua mulher fazer-lhe todas as noite bacalhau.
- E não se enjoa?
- Não! - respondeu-me. – conheci-a no dia 1 de Dezembro de 2011, da parte da manhã e namoramos da parte da parte e logo aí combinamos casamento para o ano seguinte. Foi no dia…
- …1 de Dezembro de 2012! – completei.
- Esteve lá?
- Não! Foi um palpite. Continue.
- E desde que casei, sempre que estou com ela faz-me bacalhau. Já comi duas vezes…amanhã é a terceira! – e sorri. - Estou ansioso por estar com ela. Viram-na e disseram-me que ela está grávida de quatro meses…vou ser pai!
- Parabéns! – disse-lhe, sem estar convicto das minhas palavras.


Despedimos-nos e no telemóvel registei o dia 29 de Agosto.

domingo, 23 de novembro de 2014

O Mundo ao contrário

Aquele final de tarde foi o “abrir de olhos” de uma realidade que eu não queria ver. Os últimos tempos tinham sido de exageros e descuidos aos quais tinha que pôr fim.
Após ouvir na rádio que meia dúzia de políticos, promotores imobiliários e banqueiros tinham-se entregue no posto de polícia mais próximo, eu decidi parar no primeiro consultório médico por onde passa-se.

- O que vem cá fazer? – perguntou-me o médico.
Contei-lhe a última noite, passada entre amigos abstémios, numa festa de arromba na margem do rio, que desagua no monte, e onde bem perto três pescadores atiravam peixes para a água. Comi um peixe grelhado e duas sopas sem sal, acompanhados por água, a meio da noite virei-me para os digestivos, passando a beber águas com gás e terminando com chá! Deitei-me cedo…antes da meia-noite! Como é óbvio, acordei bem disposto.

Depois da explicação o médico mandou-me fazer análises.

Uma semana depois, no consultório, assustava-me a cara do médico enquanto olhava para os resultados.
- Então, Sr Doutor?!
- Meu amigo, as suas análises estão óptimas! Todos os valores estão correctos. É urgente mudar de hábitos. Anda no ginásio?
- Sim! – respondo.
- Pois! Mas convém parar.
Em vez do ginásio, aconselhou-me um pasteleiro, para fazer uma avaliaçao física. Além disto receitou-me fritos, doze em doze horas, a meio das manhãs um bolo com creme ou uma bola de carne e a meio das tardes um gelado de chocolate ou uma torta de noz. Doze em doze horas Whiskovirax e bagaced, sempre em jejum.
- Isso são comprimidos ou xaropes? – pergunto.
- Amigo, são garrafas e toma-se ao copo. E para não ser muito dura a dieta, ao fim de semana pode ter um miminho, no sábado ou no domingo pode-se lambusar numa pescada cozida.

Saí do consultório directo para a pastelaria “Ricochete” e pelo caminho passei no supermercado para aviar a receita.
Chegado à “Ricochete”, sou atendido pelo PT (pasteleiro trainer), um verdadeiro “pipo”.
- Com que então, corpinho em “V”! – diz-me – Vamos transformá-lo em “B”.
Começamos com um “Teste de Cooper”, para avaliar quantas bolas de berlim conseguia comer em doze minutos – Fraquinho – diz-me o PT, passado o tempo da prova.
Delineou-me um plano de treinos:
20 minutos de aquecimento, sentado na mesa 1 a comer torradas lambusadas em manteiga saturada; depois passo para a mesa 3 e faço três séries a comer natas (8 natas por série), depois salto para a mesa 7, para um “Drop set” a comer biscoitos caseiros. No fim, 20 minutos de cárdio, sentado na esplanada a fumar.
Cumpri este plano durante um mês, três vezes por semana, ao fim do qual fiz novas análises.

Na expressão do médico, adivinhava um sorriso que não se mostrava.
- Está no bom caminho, amigo! Já tem os triglicerídeos e os …, todos errados! Com calma e paciência o amigo fica um obeso mórbido e, com um bocadinho de esforço, disciplina e alguma sorte, ainda morre, antes do tempo, de ataque do coração!

Saí do consultório feliz com as novidades para contar à minha mulher. Quando toco à campainha de casa, o PT abre a porta e diz-me - Olá, meu amor!!!

domingo, 16 de novembro de 2014

Guião

Em virtude de uma ruptura muscular, há 4 semanas atrás, que me afastou das futeboladas com os amigos, comecei ontem a ser acompanhado por um psicólogo, que me disse, “Faça outras coisas.”…e fiz!
(a parte da lesão, contarei em pormenor noutro texto)
Tinha em “carteira” um guião escrito há já algum tempo e comecei a realizá-lo.
Depois de guionista, sou agora realizador e actor…e os meus amigos também, todos nós num total amadorismo, em que cada um faz de si próprio com interpretações soberbas. Como exemplo, foi excelente filmar o Miguel, a fazer de si próprio, a dormir, numa interpretação “oscariana”!
Data para o fim da filmagem não há. Se dependesse da minha vontade, seria rápido, mas esta nem sempre se concilia com a minha disponibilidade e da dos meus amigos actores. Como tal, será quando for e no final todos serão avisados.

Deixo-vos o início da estória, em “linguagem” de guião.

A vida de Gusto (igual à de quase todos)

INT. – CASA
Na sala, vê-se o aquário, a imagem vai rodando à volta dele e vê-se GUSTO, 40 anos e bem parecido, sentado, a contemplar os peixes. A imagem fica focada em Gusto, nostalgicamente triste e a cena seguinte é o regresso aos tempos de adolescente.

EXT. - ESPLANADA

Um adolescente sentado numa mesa de esplanada com uma chávena de café vazia à sua frente. ELA, bonita e morena, com grande carrapito lilás, chega, coloca-lhe a mão na cabeça, debruça-se sobre ele, aproxima a cara e dá-lhe um beijo.

MARIA
Olá Gusto! Tudo bem? Desculpa o atrazosito! Chegaste há pouco?

Ele olha para o relógio de pulso, volta a olhar para ela, que entretanto se sentou.

GUSTO
Olá Maria! Não, não, cheguei há pouco mais de uma hora e meia!

MARIA
(sorri)
Despachei-me só para estar contigo!

Aproxima-se o empregado do café

EMPREGADO
Vai desejar alguma coisa?

MARIA
Hummmmm, talvez um Frisumo de Ananás.

Após um compasso de espera.

EMPREGADO
Então? Talvez sim ou talvez não?

MARIA
(decidida)
Tenho a certeza que é um talvez sim!

O empregado afasta-se e Gusto e Maria, sentados, viram-se um para o outro. Ela com os braços pousados em cima da mesa, dona e senhora da situação, ele com os braços para baixo e as mãos debaixo da mesa, para esconder o nervossismo.

Depois de um compasso de espera.

GUSTO
Estás bonita!

MARIA
Obrigada!
(pausa breve)
Não notas nada de diferente?

GUSTO
Aonde?

MARIA
Em mim, meu lindo!

E encolhe os ombros, um pouco envergonhada pelo elogio feito ao Gusto.

Entretanto o empregado pousa a bebida em cima da mesa.

Após ouvir esta pergunta, feita ao ínício da tarde, ele não via nada de diferente nela, apesar do carrapito lilás, coisa que não tinha no dia anterior, quando se encontraram no mesmo sítio.

Maria fica a olhar para o Gusto, enquanto ele a fita de diversos ângulos sem ver nada de diferente.

GUSTO
Vou só à casa de banho. Quando tenho vontade de fazer chichi, fico muito distraído!

Ela sorri.

Ele levanta-se e vai directo ao empregado que também os serviu no dia anterior.

GUSTO
Ó senhor, desculpe! Eu ontem estive aqui com aquela minha amiga…

EMPREGADO
Sim, eu lembro-me!

GUSTO
Nota alguma coisa diferente nela?

O empregado desvia o olhar em direcção da mesa e após breve contemplação:

EMPREGADO
Não! Não vejo nada de diferente na menina!

Gusto regressa à mesa e senta-se.

MARIA
E então?

Gusto, com uma expressão desconfortável fica a olhar para a Maria. Olha para o relógio. A imagem fixa o relógio que marca 15h07m.

VOICE OVER
Há algo que o homem durante o seu crescimento não desenvolve, algo para o qual nem a sua mãe, no seu pleno amor, o preparou.

MARIA
E então?

O tempo passava e a tensão aumentava. Gusto olhava para a Maria sem vislumbrar nada de diferente na sua quase namorada. Olha para o relógio. A imagem fixa o relógio que marca 19h30m. A imagem volta ao casal na mesa. Ele arrisca responder com sinceridade, esboçando um sorriso tímido.

GUSTO
Não! Não vejo nada de diferente!

Perante a resposta, Maria, mexe no carrapito lilás meia dúzia de vezes, que fez antes do encontro, e em vez de acabar o namoro, diz baixinho com os dentes cerrados, fruto de uma raiva imensa.

MARIA
Ai não notas nada de diferente?! Havemos de casar e tu vais sofrer.

Câmara fixa Gusto que diz baixinho, para si mesmo:

GUSTO
Ela vai acabar o namoro!


LEGENDA – QUINZE ANOS MAIS TARDE

INT. – QUARTO

Gusto e Maria deitados na cama a dormir. Não falta muito para o despertador tocar.

domingo, 9 de novembro de 2014

O ritmo do tempo e o preço da idade

Quando olho para o meu álbum de fotografias, se começar a abri-lo pelo ínicio, pois tenho o hábito de abrir o jornal “O Jogo” pelo fim, encontro duas fotografias com três meses, seguidas de outras duas já com seis.
Convém recordar que tenho quarenta anos e que no ano de 1974 ter nos primeiros seis meses de vida quatro fotografias era uma extravagância e havia quem dissesse que me estavam a estragar com mimos!
Não me recordo de com três meses desejar ter seis, mas lembro-me perfeitamente de em criança os ponteiros pararem e o tempo não passar, e de um dia dos meus seis anos ter a duração de três dias dos meus quarenta.
Na primária, o tempo chegou a arrastar-se para trás, fruto de uma paixão correspondida, e sentia que o dia de casar com a Carlinha (sim, ela prometeu-me casamento a meio da 1ª classe) estava à distância do “além”, numa altura em que tudo o que era para amanhã era sempre distante demais!
Impaciente, aos treze anos queria ter dezasseis para parecer crescido (!) e aos dezasseis queria ter dezoito para ter a carta. Nunca estava bem com a idade que tinha, mas lembro-me de pensar “ No ano dois mil vou ter vinte e seis anos. Que velho!”
Não me senti velho quando lá cheguei, coabitando o mesmo espaço com os adolescentes, mas diferente deles no ritmo e também nas lamurias, uns praguejando porque o tempo não passava e eu a dar por mim a dizer “O tempo corre!”
E correu até aos trinta!
E aos trinta lembrei-me dos meus dezassete. E dos meus dezassete lembrei-me de um certo sábado à tarde, em que encontrei um amigo destroçado, a quem delicadamente perguntei:
- Estás todo lixado, Fernando! O que se passa?
- Faço trinta anos. - respondeu-me.
Com carinho consolo-o:
- Deixa lá, eu tenho dezassete!
E ele chorou e virou costas e foi-se embora e nunca mais me falou. Senti que ele trocava a idade que tinha pela minha.
Sugestionado por esse acontecimento treze anos antes, passei o dia 26 de Dezembro de 2003 ao lado de um desfibrilhador e acompanhado por um amigo psicólogo. Quando batem na torre da igreja as vinte e duas, hora em que nasci e marcou a minha entrada nos “trinta”, nada aconteceu! Um momento antes tinha vinte e nove no momento seguinte trinta. Nem uma depressão, nem nenhuma quebra física. O coração batia normalmente e nem uma mísera cãibra senti a denunciar o peso da idade! Que seca! Nada de extraordinário para relatar a não ser o facto de ter passado a noite a ouvir os desabafos do meu amigo psicólogo a sofrer de mal de amor e, ao contrário do Fernando, não trocar o actual número por outro abaixo.
Espirrei e sem dar conta fiz quarenta. Agora, a dois meses de fazer quarenta e um, o meu irmão fez trinta e oito e chamei-o de “velho”… ele sorriu. O sorriso era acompanhado de um pensamento, ao qual respondi “Rejuvenesce-se a partir dos quarenta! Vais ter de esperar mais dois anos.”

Nunca mais soube do Fernando e o meu amigo psicólogo, sempre que pode, passa por minha casa para desabafar e, por enquanto, continuo a não trocar o meu número actual pelo anterior!

domingo, 1 de junho de 2014

Manicómio.

Se a maior parte das estórias que ouvia em pequeno, começavam por “Era uma vez…”,as minhas crónicas, ou sejam lá o que for, começam muitas vezes por “Acordei com o sol a entrar pela janela…”.

Sendo assim, esta manhã fui acordado com o sol a entrar pela janela. Quando me apercebi de que não estava no domínio do sonho, pinchei da cama para sair para a rua, pois à tarde poderia perfeitamente nevar, chover torrencialmente, trovejar ou acontecer o maior ciclone alguma vez sentido no Paranho.
Na caminhada até à esplanada do café, ao sentir os raios de sol, estava longe de imaginar que iria viver um pesadelo.
Sentei-me, pedi um café e abri o livro que levei comigo (e escrito por mim), não que o quisesse ler, mas para torná-lo visível.
Tinha o “Venceslau e outras histórias” aberto na página 47 e a cabeça a começar a tombar, tomada pela sonolência, quando ouço, de forma estridente, perguntarem-me:
- Queres jogar matraquilhos?
Abro os olhos, o livro mantém-se aberto na mesma página, e em frente a mim está sentado um “tipo”, que nunca tinha visto. Apesar das minhas tardes de domingo, quando era pré-adolescente, serem passadas na “matraquilhada”, respondi:
- Não!
Imediatamente, ele desapareceu.
A esplanada estava composta, mas sem nenhum espécime feminino que me mantivesse de olhos abertos, e eles começam novamente a fechar, quando sou sobressaltado com um berro:
- ESTOU A SENTIR-ME ENTUSIASMADA! – diz a Maria, enquanto atravessa a esplanada.
O Sr. Mendes, sentado duas mesas ao lado da minha, grita-lhe:
- Ainda bem!
Depois disto a normalidade voltou aquele espaço, mas por pouco tempo. Os meus olhos ainda não estavam totalmente fechados e ouço, em gritaria, a Carla dizer, do canto da esplanada:
- SOU MUITO FELIZ! E QUEM É FELIZ NÃO TEM QUE ANUNCIAR AO MUNDO!
Entre as várias pessoas sentadas na esplanada, ouve-se:
- Boa!
- Porreiro!
- Gosto!
- Estou contigo!
- Gosto!
- Gosto!
- …
Sem estar a perceber este espectáculo, ouço:
- Queres jogar matraquilhos?
Poça, era o mesmo gajo, com o mesmo convite.
- Não! – respondo de forma seca.
Mantenho-me desperto à espera que a normalidade se reponha. Ao fim de algum tempo, com segurança deixo-me adormecer na cadeira da esplanada, com o livro aberto. Ao fim de não sei quanto tempo sinto as minhas mão a abanar. Acordo, a babar-me,  e a minha amiga Teresa estava a escrever, com marcador, na página 47 do livro, “gosto”!
- Oh, estragaste-me o livro! – digo.
- Estraguei nada! Até logo! – despede-se.
Continuo sentado a olhar para todos os lados e a começar a ficar assustado, e:
- Queres jogar matraquilhos? – diz-me o mesmo gajo.
- Desaparece! – ordeno-lhe.
Enquanto desaparecia, a olhar para trás, volta-me a perguntar – E bilhar? Queres jogar bilhar?
Não percebia a insistência daquele gajo, em jogar qualquer coisa comigo!
Bem, apercebi-me que não iria conseguir relaxar (dormitar) na esplanada e para me manter activo, desfolho uma página do livro. Ajeito-me na cadeira para ficar em posição de “galo” e vejo a Ana, ao estacionar o carro, a bater no carro da frente e no detrás. Despreocupada com os outros condutores, sai do carro, aproxima-se da esplanada e berra:
- OHHHH, QUE CHATICE! E A MANHÃ QUE ESTAVA A CORRER TÃO BEM! LOL, LOL, LOL, LOL…
E todos se riam na esplanada, com o comentário da Ana, e por trás de mim ouço alguém a dizer-me ao ouvido:
- Queres jogar bilhar?
Desvairado, levanto-me e agarro o gajo pelos colarinhos e ameaço-o:
- Se me voltas a convidar para jogar seja ao que for, parto-te todo. Percebes?
- E matraquilhos? – pergunta-me e foge a sete pés.
Pego no meu livro, caído no chão, volto a sentar-me e abro-o à toa. Ficou aberto entre as páginas 98 e 99 e ao tentar disfarçar que o lia, quase que adormecia outra vez, até que…
- HEI, MALTA – era o João, que tinha chegado a correr – APANHEI O MEU CÃO A ROÇAR-SE NUM LIMOEIRO!
O Neves, sentado no meio da esplanada, ri-se, vai para o carro e percorre as ruas da Trofa com a cabeça de fora, gritando e partilhando com todos:
- O JOÃO APANHOU O CÃO DELE A ROÇAR-SE NUM LIMOEIRO! O JOÃO APANHOU O CÃO DELE A ROÇAR-SE NUM LIMOEIRO! O JOÃO APANHOU O CÃO DELE A ROÇAR-SE NUM LIMOEIRO!...

Sentido-me num manicómio, em que o que mais me chateou foi o gajo a convidar-me para jogar matraquilhos e bilhar, fui para casa, dormir…na esperança de sonhar com um mundo normal!

P.S. – Durante algum tempo, este blogue vai hibernar, com a promessa de um regresso!

P.S. (2) – O regresso pode ser já na próxima semana! Não sei se conseguirei viver sem o protagonismo internacional que o “Escrita com Norte” me dá!

domingo, 25 de maio de 2014

Saudosismos à parte...

Num mundo em que cada vez mais as pessoas se entrincheiram em posições fixas, sem conseguir ver nada do lado de lá, fruto de uma formação cada vez mais académica, eu, pela mesma razão, movimento-me por áreas cinzentas.
Primeiro, porque não acredito em verdades absolutas, com a excepção de que o meu Sporting vai ser campeão para o próximo ano, nunca arriscando a “inverdade” de que vai ser este ano e segundo, porque penso que o outro lado tem sempre alguma razão, facto que não digo à minha mulher.
Como tal, quando tomo uma posição, geralmente não é por achar que é aí que se encontra a verdade toda, mas sim por ter as partes mais importantes da verdade, ou simplesmente por me sentir mais confortável.
Entre o conservador e o progressista, movimento-me entre os dois, em diferentes tons de cinzento.
Se por um lado sou contra as touradas e era capaz, para acabar com esse “espectáculo”, pelo menos na televisão, ouvir um concerto de Maria Guinot durante dezoito hora seguidas e preferir abraços do que espetar ferros noutros seres vivos,  por outro sou muito conservador e fico triste quando se muda aquilo que está bem.

Semana de final da “Liga dos Campeões”, jogo imperdivel. Quarta-feira, noite mítica das finais desta competição, estou sentadinho no sofá a torcer, sem que o jogo tenha ainda começado, para que vá a prolongamento e depois a penalties. O tempo passa, faço zapping por dois triliões de canais e o jogo não começa…ligo ao meu irmão:
- Em que canal é o jogo? – pergunto.
- Qual? – pergunta-me ele.
- O Atlético-Real. – digo-lhe eu
- Isso é no sábado! – diz-me, continuando – Amanhã é quinta, não te esqueças de ir trabalhar!
Depois de desligarmos, pensei um palavrão e pela boca saiu-me um indignado –“Poça!”
Antigamente tínhamos a “Lotação esgotada”, agora substituída por “Quem quer ser milionário”, apresentado pela Manela. Tínhamos um festival da canção e Eurofestival a uma só “mão”, nós com músicas tristes e melancólicas e as artistas do centro e norte da Europa a apresentarem-se loiras e mamudas (dava gosto)…nunca morenas e barbudas!
Há coisas que não deviam mudar, mas tudo bem, o mundo muda como muda de posição o ponteiro do relógio!
Ainda sentado no sofá a digerir o facto de que não iria ver nessa noite a final da “Liga dos campeões”, achei-me merecedor de um miminho…e fui jantar a um restaurante na minha rua.
Dez minutos após ter a ideia, já estava a ser atendido:
- Boa noite! O que vai desejar? – pergunta a pessoa que me atendeu.
Sem nenhuma dúvida e ligeiramente sôfrego, peço:
- Pataniscas, eu desejo pataniscas!
E o inesperado acontece, quando o empregado de mesa me pergunta:
- Quer pataniscas de bacalhau ou de vegetais?
Pela cabeça passaram-me tantos palavrões como os canais de televisão que tenho em casa:
- De bacalhau!! Eu quero pataniscas da única maneira que conheço…de bacalhau! – respondo.
- Então vai demorar um bocadinho, temos que as fazer. Se fossem de vegetais, já estão prontas…têm mais saída! – esclarece-me o empregado.
Sem dúvida, eu não me movimento tão depressa como os ponteiros do relógio nem ao mesmo ritmo que o mundo muda!

Apesar das zonas cinzentas em que me movimento, há coisas que me fazem desejar que o relógio parasse em 1988, em que patanisca…era patanisca!

domingo, 18 de maio de 2014

Teste ao espírito criativo com um “copo” a mais!

Sábado, Avenida de Paradela, Trofa, 23h32m, sofá de casa…Cheguei há cinco minutos da melhor tasca do mundo, a “Canzoada”, também na Trofa. 
Devido a dois copos a mais de “água”, o índice de álcool no sangue não está 0,00 g/l, como quando o dia começou, e para chegar até à cama, o trajecto vai ser  feito por etapas. Apesar de a vontade ser levantar-me do sofá, ir para o quarto e tombar na cama, a Cristina já me avisou para não me deitar sem antes tomar banho! Sem balizamentos morais, derrubados por uns copitos de água verde branca fresquinha, vou escrever o que sair, amanhã, mesmo que tenha vergonha do que sair agora, é o que vou publicar no melhor blogue do mundo num raio de três metros à volta de minha casa.
Antes de mais gostaria de soltar um palavrão…e vou soltar!
Aahhh grandiosa prostituta que o deu à luz! Hoje à tarde perdi no futebol.

Mas o dia começou cedo, por volta das oito, com o índice de álcool no sangue de  0,00 g/l. Às 9h15m tinha consulta de oftalmologia no hospital da minha terra.
(Vinha acontecendo de forma persistente ao avistar alguém ao longe,pensar – “Que miúda gira!” – mas com a aproximação, verificar que além de não ser gira, por vezes não era mulher! Nitidamente, estou a ver mal ao longe.)
Com a devida antecedência chego ao hospital e penso – “Pode ser desta que seja atendido a horas”. Mas para não correr riscos, porque detesto chegar atrasado e fazer os outros esperar, não marquei nada para o resto da manhã.
O tempo passa e não ouço chamar o meu nome. Estou só, numa sala, virado para a parede a pensar no sol lá fora.
 - Senhor José Calheiros! – Chamam-me.
São 10h30m, quando entro no consultório. Apetece-me mandar alguém para a pequena cesta que se encontrava no alto dos mastros das caravelas.
- Olá, Sr. Doutor!
- Olá, Sr. Calheiros.
- Ora veja aquelas letras lá ao fundo! – Pede-me, prosseguindo – Agora leia estas ao perto.
Após este pequeno teste, pergunto:
- Ao longe sou um vesguinho, não sou, Sr. Doutor?
- Não. Ao longe vê perfeitamente bem, agora ao perto é que não. Mas nada de alarmante e que necessite usar óculos.
Ao sair do consultório, avisto ao longe, na sala de espera principal, uma miúda toda fresca de mini-saia, boa como o “Zea mays”, vulgo milho. Ao aproximar-me, apercebo-me que é a Maria, que se tivesse espelhos em casa, usava burca!
Saí do hospital, nada convencido do veredicto do médico!
No trajecto para casa paro no café, para tomar um café (além de ser pontual, gosto de ser coerente), mas estraguei tudo, quando dez minutos depois peço umas águas sem gás! Lá fora na esplanada, estão o Sampaio, portista, e o Rui, sportinguista tal como eu. O que os dois têm em comum, além da amizade, é o corpo em “B”.
Quando saio do café, com relativa alegria, cumprimento-os.
- Tudo bem, rapazes?
- Está tudo, Calheiros! – E prosseguem - Estás elegante…
E termino a frase por eles – E com o corpinho em “V”!
Este momento de “autoconvencionismo” evitou uma chamada para a minha mãe a perguntar “quem é o mais bonito do mundo”.
Chego a casa e a minha cabeça está em modo “futebol logo à tarde com os amigos, às cinco, no pavilhão do liceu da Trofa”.
Fui um pouco mais cedo. Às 16h25m já estava lá e com um bocadinho de sorte, alguém da hora anterior aleija-se e jogo eu. Realmente a mente é poderosa e o Sérgio “rasgou-se” todo e não aguentava continuar. Entrei eu…todo contente!
Fiz um jogo e depois outro. Perdi um e depois o outro…mas parecia um “menino”! No fim, uma equipa, desta vez reduzida a cinco, foi para a “Canzoada”.

Cheios de sede, mandámos vir por engano, o vinho em vez da água, depois a comida e depois o à “vontade” e a conversa, por vezes em jeito de discussão. E em apenas cinco pessoas tínhamos um país representado, uns do Porto, outros do Benfica e outros do Sporting, uns de esquerda, outros de direita e eu por Portugal e pelos portugueses, uns patrões e outros empregados, uns ricos e outros remediados,…
Com muito ou pouco saber, todos sabíamos muito de tudo, mas quando o Ricardo diz que o Benfica é o maior, o Mário, portista, rapidamente lhe diz:
- Felaceia-me o pénis!
A expressão do Ricardo “gela”, virado para o Mário, e por breves segundos ficámos a olhar para os dois, à espera do próximo episódio.
- Vai-te sodomizar. – Responde o Ricardo, voltando a discussão novamente à mesa.

Eu vim para casa e estou a acabar de escrever este texto e mesmo com algumas tonturas na cabeça, tenho a certeza que além da morte, a “Canzoada” também iguala todos os Homens!

P.S. –Já tomei banho e não resisti a rever o texto antes de ir para a cama, mesmo estando ainda tonto…como o texto (gosto de ser coerente).

domingo, 11 de maio de 2014

Visita.

No dia anterior, no boletim meteorológico, tinham alertado para instabilidade no tempo. Como este se mantinha persistentemente chuvoso, já há muito tempo, julguei que a instabilidade seria a oscilação entre precipitação extrema  e o dilúvio.
No dia seguinte, domingo, sem perder tempo a olhar cá para fora, visto-me convenientemente para sair, com impermeável, galochas, óculos da piscina e três sacos de areia amarrados à cintura que teriam a função de âncora, caso eu fosse levado por uma enxurrada.
Ao primeiro passo fora de casa, sou quase cegado por raios de sol e de imediato começo a transpirar…afinal a instabilidade, era sinal que estaria bom tempo nesse dia.
Independentemente das condições meteorológicas, a intenção para esse dia era visitar duas pessoas, que não via há bastante tempo…O Sr. José e a Dona Arnaldina, já entradotes, na casa dos oitenta. O sol e a temperatura agradável, davam-me outro brilho e seguravam-me um sorriso, algo que esperava ver, também, nos meus amigos!
A viagem não é longa, seria feita por uma estrada interior entre a Trofa e São Mamede do Coronado, que mesmo ao domingo, apresenta trânsito quase nulo. Por entre montesinhos, valesinhos e o bom tempo, a viagem decorreu em ritmo turístico: vidro para baixo, braço de fora, música a dois decibéis acima do que é normal, velocidade a uns saudáveis 34 km/h,..e apreciava a natureza.
Natureza que reflectia ela própria a instabilidade do tempo com o sol inesperado, manifestando comportamentos estranhos. Um pássaro a bicar um tijolo, um coelho a lamber um gato, o Sr. Manuel, com fama de macho, a apalpar o traseiro ao Quim, um cão a roçar-se a um espantalho e meia dúzia de carros, atrás de mim, a buzinarem, que nem tolinhos!
Ainda nessa tarde cheguei a São Mamede do Coronado. Estaciono e encontro o Sr. José, sentado à entrada da casa do filho.
- Boa tarde Sr. José!
Ao ouvir a minha voz, levanta a cabeça, e como pessoa sensível que é, chora…quem diria, com uma simples visita!
A vida dura que sempre levou, secou-lhe as lágrimas, e só quem o conhece bem, sabe que ele chora com a voz e a boca tremida…e assim foi quando me disse: – Olá, Zé! – partilhamos o mesmo nome.
Ficamos a conversar, eu mais a ouvir, e fiquei a saber dos desmaios ocasionais do Sr. José.
A mulher, a dona Arnaldina, estava em casa, três portas acima. Fui lá.
Bato à porta, depois de a ter aberto, já com parte do corpo na entrada da casa e chamo: – Dona  Arnaldiiinaaa!
Sem nenhum sinal de vida, mas com o barulho da televisão ligada, invadi a casa mais um pouco e volto a chamar: – Dona Arnaldiiina!
- Quem é? – ouço-a a perguntar.
A voz vinha de um anexo, para onde avanço, enquanto respondo – Sou eu, o Zé!
Esta minha apresentação deixou a dona Arnaldina baralhada, até me ver, visto que o marido é “Zé”, um filho é “Manel”, um genro é “Zé” e dois netos são “Zés”.
- Ah, és tu, Zé! – E sorriu com o rosto.
O anexo é pequeno, onde cabe a cama e uma cómoda, todas trabalhadas e gastas, conferindo-lhes a antiguidade que têm, duas cadeiras, uma janela, um quadro do menino da lágrima, muita roupa amontoada, uma imagem da Nossa Senhora e uma televisão sintonizada na TVI, passando música…da pimba!
Depois de lhe dar dois beijinhos, sento-me numa das duas cadeiras e pergunto:
- Tudo bem?
- Não, Zé! – responde de forma arrastada, continuando – São os joelhos, não me dão sossego. Para andar pela casa vou-me agarrando às coisas.
Sempre conheci aquela casa assim, cheia de móveis, com pouco espaço para circular. Se em tempos era sinal de falta de gosto na decoração, agora, na velhice, é um bem para a segurança.
- Ontem ia caindo, mas agarrei-me ao sofá. Mas não é só dos joelhos, a cabeça também não ajuda. Na semana passada fui ao hospital fazer um “taco”, para ver como é que ando, entretanto o médico disse-me para tomar chá de “caramila”!
- Chá de…? – pergunto, pensando que não ouvi bem
- Chá de “caramila”. – Responde-me, parando um pouco enquanto se fixava na televisão e continua – Esta rapariga é que é jeitosa e canta muito bem!
(Não podia estar mais em desacordo)
- O tio Zé (é assim que dona Arnaldina, trata o marido) é que anda mal! Durante o dia vai para o centro de dia (parece-me coerente), e não gosta, depois vem para casa…e não gosta! Depois anda-me a desmaiar! Ontem desmaiou-me ao jantar. Por acaso já tinha comido, senão era comida para o lixo e na quarta-feira, desmaiou e não acordava. Telefonei ao Fernando, mas depois ele saiu do desmaio…
- Poça! E depois?
- Depois o Fernando chegou. O tio Zé ficou sem fome e…o Fernando comeu o jantar, senão era comida para o lixo! …Eu é que gosto destes apresentadores!
(Não podia estar mais em desacordo e pensava no Sr. José, sozinho, sentado à porta da casa do filho)
E tu! Como é que andas? – Pergunta-me.
Eu achava que estava bem, mas depois deste relato achei-me fantásticamente bem!
- Olhe não toca só aos mais velhos! Na semana passada, tive uma ruptura muscular na coxa e nesse mesmo dia, à noite, dei um jeito às costas. – depois de uma pausa, prossigo – tem-me doído muito a cabeça!
- Toma um chá de “caramila”. – sugere a dona Arnaldina.

A conversa prosseguiu de desgraça em desgraça e saí já tarde de São Mamede de Coronado, obrigado-me a dar 50 km/hora nas rectas. A chegar à Trofa, a menina do rádio anunciava estabilidade do tempo para o dia seguinte, com chuva forte, por vezes acompanhada de granizo.

domingo, 4 de maio de 2014

Liberdades de Abril (parte II).

A modista deu lugar ao estilista, o alfaiate ao costureiro, o barbeiro ao cabeleireiro, a decoradora ao arquitecto de interiores, o escudo ao euro, o contínuo ao auxiliar técnico de educação, o negro à minoria, o governante ao político, o império a uma “coisa” e depois a uma província da Europa, o Nandinho, em tempos o paneleiro, agora é gay,… Mas a mais importante conquista foi o “Politicamente correcto”, que nos permite sorrir durante uma sodomização colectiva!
Nada disto me arrelia! Pois eu tenho uma vidinha!

Sentia-me claustrofóbico, tudo era escuro e o espaço pequeno, sempre que esticava o braço tocava numa parede, sentia-me a ficar sem ar e mesmo antes de morrer, e aborrecia-me não saber aonde, ouço, Trimmmmmmmmm! Como um pugilista que está a ser espancado é salvo pelo gongo, eu fui salvo da morte certa pelo toque do despertador. É sexta-feira, se fosse fim-de-semana, em que o despertador não toca, certamente já não estaria aqui!
Abri os olhos e senti-me “cuspido” do sonho para este mundo, com a claridade do dia a querer forçar a entrada no quarto. Ainda não devidamente acordado digo:
- Morzinho, vou ficar mais um bocadinho deitado, enquanto preparas o pequeno-almoço!
- Não demores muito. – diz a Cristina.
Aquela frase, foi como lavar a cara com água fria. Pincho da cama e saio do quarto com destino à cozinha. Ficou ela deitada…mais um bocadinho!
Antes de nos despedirmos e de eu sair de casa, a minha senhora pergunta-me:
- A que horas chegas?
- À hora X. – respondo a medo, com o que dai pode vir.
- Ahhh, eu chego ás X horas e 5 minutos. Como chegas mais cedo apanha aquela roupa, estende a que está na máquina e…
-Simmmmmm! – e saí mal pude, antes que a lista de tarefas aumentasse.
A caminho do trabalho recebo uma mensagem, que só iria ver quando aparquei devidamente o carro no local de trabalho. Era um pedido/ordem para passar pelo supermercado.
Saio do carro e assumo a “farda” de profissional. Tinha que me despachar, pois tinha uma reunião das nove até às dez. Apesar de quinze anos de trabalho efectivo, continuo a não fazer uso dessa grande conquista, que é o não cumprimento dos horários. Antes das nove já estava sentado na sala de reuniões e a segunda pessoa apareceu cinco minutos depois das nove e quem a convocou apareceu ás 9h e 10m. Como seria de prever, acabou à 10h 30m. De volta ao meu gabinete, coloco trinta post-its à volta do monitor, com o dizer “compras”.
No final do dia laboral, vou directo ao supermercado, pertencente ao Grupo que faz promoções de cinquenta por cento de descontos, e faço as compras todas. De seguida, casa, apanhar roupa e estender outra. O que me animava era a futebolada, mais logo, com os amigos, essa hora mágica, em que nós, homens modernos, voltamos a ser canalha, brutos, por vezes broncos, outras vezes infantis, sem dúvida Neanderthais, mas sempre amigos!
Como o que é bom, acaba depressa, às 21h 30m já estava em casa.
- Morzinho! Morzinho, já cheguei!
Perante a falta de resposta e ainda imbuído do espírito heróico que uma futebolada nos proporciona, pensei, “Ela está desmaiada...mas como um príncipe, dou-lhe um beijo e ela desperta!”. Procurei a minha princesa pela casa e encontro um papel a dizer, “Fui caminhar, beijinhos!”.
Como a noite estava quente, desci da posição de príncipe à condição natural de lacaio, e ousei pensar, “Estou cansado, mas vou dar uma voltinha.”, e saí.
Pouco tempo depois toca o telemóvel, é a minha senhora:
- Olá, cheguei agora a casa. Aonde estás? – pergunta-me.
- Vim caminhar.
- Demoras? – pergunta-me, soltando um sorriso.
- Não. Já vou.
E apressei o passo, porque queria saber aonde está aquela camisa, que quero vestir amanhã.

- A minha camisa? – eu.
- Qual? – ela.
- Aquela assim e assado. – eu.
- Está la em baixo, na lavandaria. – ela.
- Eu quero vesti-la amanhã. – eu.
- Vai passá-la, a tábua e o ferro também lá estão. – ela…e continua – Vou-me deitar. Quando vieres para a cama, trazes-me um copo de água? – e dá-me um abraço.

Quero uma revolução, mas é para voltar ao antigamente, pois eu tenho uma vidinha!

domingo, 27 de abril de 2014

Liberdades de Abril (parte I).

Félix, assina, como no bilhete de identidade, Felix DA Silva DE Pereira e é conhecido em casa por pai e “home”, mas é mais conhecido entre os amigos por Félix e mais conhecido entre os conhecidos por Félix. Quando conhece alguém apresenta-se como Félix DA Silva e entre quem não o conhece é conhecido por “aquele gajo, pá!”.
Em Março de 1974 fez quatro anos de casado, cerimónia que aconteceu em 1970, após a chegada de uma missão de dois anos e meio no norte de Moçambique, onde fez amizades de sangue que nunca esqueceu. Nesses quatro anos de alguma felicidade teve quatro filhos da mulher, a quem os pais puseram o nome de Maria, porque desejavam que a filha fosse um exemplo de mulher, como a mãe de Cristo, e “do Céu”, porque a mãe, devota seguidora do padre da aldeia, gostava de uma passagem da homilia, em que se faz referência à “Glória do céu”.
Com quatro gravidezes e actividade física restringida às lides domésticas e a tratar dos filhos e do “home”, o corpo de Maria do Céu tornou-se desinteressante (sem nunca o ter sido) aos olhos de Félix. O casamento pela igreja e a “vergonha” não davam coragem a Félix de deixar a mulher, apesar de ele ter a certeza disso nos festejos do  quarto aniversário. Precisava de uma reviravolta na sua vida!
Um mês depois aconteceu uma reviravolta ao país, através de um golpe de estado, com o objectivo (aparente) de Democratizar, Descolonizar e Desenvolver.
Félix DA Silva DE Pereira não era muito inteligente, mas não se deixava ir pelas “ondas como os cardumes” e apercebeu-se que o “Democratizar” aconteceu por um triz, visto que alguns (talvez a maioria) capitães de Abril queriam acabar com uma Ditadura de direita e impor outra, tornando Portugal um país satélite da União Soviética; o “Descolonizar” foi apressado, fazendo 500.000 portugueses voltar à metrópole, sem nada e deixando as ex-colónias entregues a facções armadas e a população negra desprotegida; e o “Desenvolver”, através de uma reforma agrária medieval!
- Isto eu não festejo! – Pensou Félix, ainda longe de imaginar o que o país esperava, a nossa “classe política”.
Mas graças ao 25, Félix festejou os dias 26, 29 e 30, datas correspondentes aos seus 3D’s de Abril.
Festeja o “Divertir”, a 26 de Abril. Sem medo junta-se com os amigos na mesa do café ou na rua e expressa as suas opiniões e no fim vai para casa em vez de ser preso…não imaginava que fosse tão animado falar sem ser em surdina e a espreitar por cima do ombro!
A 29 de Abril festeja o “Divorciar”. Foi neste dia de 1974, que chega a casa com os papéis para o divórcio e encontra a mulher de mini-saia, a mostrar as “carnes” e a fumar SG Gigante e com uns papéis de divórcio, também na mão. Foi um espanto para ele…sempre pensou que Maria do Céu fosse feliz, a cozinhar, limpar, a “levar” e a cuidar dos filhos e dele!
No dia 30 terminam os festejos de Abril, com o último “D” de “(en)Dividar”, o maior rasgo de desenvolvimento e modernidade português.
Neste dia de 74, Félix foi ao banco onde trabalho o amigo Tone e pergunta-lhe pelo estado da “conta”.
- Não tens dinheiro…mas também não deves nada a ninguém! – esclarece Tone.
- Está mal! – Responde Félix, continuando – Dá-me um crédito qualquer que me crie dívida.
Ao longo dos anos, Tone deu-lhe créditos para tudo, tornando Félix numa personalidade fiscal falida, mas moderna!

Nos festejos dos quarenta anos dos 3D’s de Félix, este foi obrigado a festejar o “dia da liberdade”, o 25, de cravo na lapela pela PDPC-DGS (Polícia do Politicamente Correcto-…)…mas o “D” de “Democratizar” vai festejar às escondidas desta, ao celebrar os trinta e nove anos do 25 de Novembro de 1975.

sábado, 19 de abril de 2014

Sou melhor que o macaco!

Sempre que o tempo permite, quando não está a chover, apesar de preferir os dias luminosos, e não está muito frio nem vento, apesar de preferir temperaturas amenas e uma brisa refrescante, abdico do carro para fazer uso da capacidade que nos distinguiu dos macacos, o bipedismo, quando os passeios, na ida e volta, não ultrapassam os cinco quilómetros num horizonte temporal de seis horas.
Durante o passeio tenho tempo para apreciar a paisagem que me escapa no dia-a-dia e perceber o sítio a que pertenço, aproveitando tempo só para mim, perdendo-me nos meus pensamentos, isto, quando inadvertidamente acaba a bateria do telemóvel que me desliga do Facebook e não me permite continuar a utilizar outra capacidade que nos distingue dos outros animais, o uso do polegar, para teclar e fazer “posts”.
Nestas caminhadas, por vezes  a caminho de nada, gosto de passar pelo café. Por vezes, como sinal de humildade da nossa espécie, paro num em especial, geralmente cheio e ruidoso. Cadeiras a serem arrastadas, máquina de café sempre a trabalhar, as pessoas despreocupadas, desatentas ao volume da voz, correndo o risco de ouvir uma estória minha, empregados atarefados, alguns sem tempo para um sorriso…recordando-me a algazarra do recreio da Escola Primária, faltando apenas uma bola a correr por entre as mesas, fazendo-nos parecer como todos os outros animais, deixando unicamente para a formiga a capacidade de viver numa sociedade organizada e complexa.
Noutras ocasiões, prefiro um outro café, mais sossegado, que me permite dar uso à inteligência, que me põe a anos- luz à frente dos outros (animais) e saber o que se passa no mundo, lendo os jornais, isto enquanto as poucas pessoas que o frequentam, não libertam a “Caras”, a “TV guia”, que me coloca a par da grelha televisiva, e a “Hola” espanhola.
Geralmente nestes passeios cruzo-me com gente, alguma de quem realmente gosto e me permito conversar, para dar uso á suprema característica que nos distingue do restante reino animal, o raciocínio…isto se não falarmos de futebol, nem de política, nem de algum reallity show e afins, fazendo-nos ser mais irracionais do que um ser unicelular…apesar de fugir do tema “Futebol”, quando encontro um amigo específico de adolescência, cuja capacidade de raciocínio equivale à de uma pedra…não desço tão baixo!
O  trajecto da caminhada, geralmente é o mais rural possível, dentro de uma cidade, para escapar à confusão do trânsito e ao roncar dos carros, prova da capacidade inventiva do Homem, que lhe permitiu viver nos meios mais hostis, enquanto o resto da bicharada teve que se adaptar…ainda só estranho os rasgos de primitivismo na comunicação, com buzinadelas, insultos e expressões amacacadas!
Mas se dúvidas houver desta superioridade, elas dissipam-se no regresso a casa, quando passo por miúdos, ainda em estado ligeiramente primitivo. Brincam na rua, andam de bicicleta, jogam à bola, em vez de estarem enfiados num quarto a provocar um holocausto num jogo de computador, e em vez disso, andam à fisgada à passarada, mostrando a supremacia do Homem sobre o resto dos animais. Entusiasmado, quando o Pantufa, um cão simpático de rua, se aproxima de mim a dar ao rabo, afasto-o com um pontapé – Sou o maior! – penso.

Cheguei a casa, feliz, por ter um cérebro maior do que o do Pantufa e o da passarada, que permite que o ser humana seja o mais inteligente…e o mais Asinino, também, sem desprimor para a raça! 

domingo, 6 de abril de 2014

O papelzinho?!

Margarida, desde há quarenta anos, faz todos os dias úteis o mesmo percurso a pé para o local de trabalho, o Departamento de Licenças das Finanças, e há cinquenta e dois anos que faz o mesmo percurso todos os dias úteis, desde os seis anos, quando foi para escola primária, que ficava cinquenta metros após o edifício onde viria a ser instalado o Departamento de Licenças das Finanças e faz, desde que se recorda, o mesmo percurso todos os fins-de-semana e dias de feriado até ao parque, que fica situado após a antiga escola primária.
De tanta ida e volta, os sapatos rasos de Margarida estão marcados no passeio e todos respeitam estas marcas como se fossem uma passadeira válida apenas para ela. Fora do trabalho acham-na simpática em virtude do sorriso que mantém no vai e vem casa-trabalho, mas preso ao passado, em que recorda o boato transmitido por uma prima, de que um primo do amigo do primo, irmão da prima, estaria apaixonado por ela e com intenções sérias de casar. O casamento nunca chegou a acontecer, porque eles nunca se chegaram a conhecer! Ainda hoje, Margarida diz-se solteira por opção, apesar de ter vivido um grande amor!
Nesta vida aparentemente marcada pelos hábitos, tudo se desmorona à noite no segredo do quarto da casa, desde que a sua mãe faleceu. Debaixo dos cobertores, enquanto dura a reza do terço, Margarida contrai e relaxa os glúteos, mantendo-os em boa forma relativamente ao resto do corpo e permitindo-lhe usar as saias ligeiramente travadas e com folhos abaixo do joelho, estilo atrevido adoptado quando jovem e parolo com o passar dos anos…para a parte de cima, camisa com lenço ao pescoço, coberta sempre por um casaco de malha.
Sendo chefe da secção de atribuição de licenças, Margarida está sempre atenta às conversas dos seus colaboradores com os empreiteiros. Sempre que uma licença está prestes a ser atribuída, ela levanta-se da secretária, aproxima-se e pergunta – E o papelzinho? Já tem o papelzinho?!
Esta pergunta maldita para os promotores imobiliários, é o “click” para, atarefados, mexerem em toda a papelada que trazem na pasta. Depois de vasculharem impressos, selos e certificados, o papelzinho nunca é encontrado e a licença não é atribuída.
Quase não há construções novas na terra de Margarida desde 1970 e as poucas que foram realizadas, foi à custa de licenças atribuídas em período de doença ou de férias desta, atribuídas pela sua substituta. Sentindo-se desautorizada, quando regressava após a doença ou das férias, quase sempre passadas nas termas, tratava de as embargar.
Naquele dia, quando passa pela obra do Centro Comercial, licenciado durante uma gripe, mas devidamente embargada e com inauguração marcada para dali a duas semanas, cai num buraco e bate com a cabeça num tijolo.
Quando recupera os sentidos, levanta-se, olha para si, tem a saia composta mas o casaco está rasgado no braço – Ainda tenho umas cotoveleiras lá em casa! – pensa. Levanta a cabeça, olha à sua volta e – Uuiiii!!! – exclama.
Por todos os lados deserto, muito próximo, milhares de homens mal vestidos são chicoteados enquanto puxam pesadas pedras. Olha para a sua direita e abismada, Margarida vê uma construção a tomar forma de uma pirâmide e em frente, um homem aos berros – Deve ser este o empreiteiro! – pensou.
- Ó senhor. – chamou num tom bem audível.
O homem de trajes estranhos e tez muito morena aproxima-se.
- A licença para esta obra? – pergunta.
- Licença?! Eu fui mandado fazer esta pirâmide.
- Por quem? – pergunta Margarida, começando a perder a paciência.
- Pelo meu Amo, o Grande Tutankhamon!
Incomodada, Margarida manda chamar o Faraó e pede-lhe o papelzinho da obra. Perante a inexistência de papelzinho, Margarida embarga a obra e fiscaliza outras em curso: estátuas gigantes com corpo de gato e rosto humano, sete templos e quatro fortificações. Perante a ilegalidade, todas as obras ficaram suspensas.

Actualmente nas aulas de História fala-se de uma civilização antiga, que antes de atingir o seu apogeu, caiu em desgraça por falta do “papelzinho”!