domingo, 29 de novembro de 2015

Quase...quase

Leopoldina, nascida nos anos 50’s, quase nova, com a marca de “solteira” gravada pelo destino cruel que levou a sua grande paixão, o Lima, que deixou de escrever as lindas cartas de amor, que mesmo sem se conhecerem a cativou com as palavras doces, confessou à sua melhor amiga:
- Estou a viver um grande amor! Ele chama-se Lima. Não tarda vou casar!
- Quem?!  - pergunta a amiga, que com a Leopoldina partilha as mesmas amizades e pessoas conhecidas.
- É um rapaz que não conheço, que gosta de mim e carinhosamente me trata por Gustinha! – responde, tentando esconder o sorriso na timidez.
As cartas deixaram de aparecer, quando o Silva, carteiro das 8 às 16, de segunda a sexta e alcoólico de segunda a domingo, desde que acorda até se deitar foi despedido, e as cartas de Lima com destino à caixa de correio de Gusta, passaram a ser entregues no destinatário correcto.
Por alturas de Novembro, mês em que o Silva festeja a última bebedeira paga com o ordenado dos CTT e Leopoldina recebeu, por engano, a última carta, relembra ano após ano, que quase casou e festeja soltando um suspiro seguido de um “ai, ai!”.
Juntou quase uma fortuna, desde que recebeu a primeira carta de Lima, depois de Silva ter bebido três cervejas a acompanhar um café com cheirinho, até à última, para o arranque da vida de casada. 
Desde há quarenta anos, faz todos os dias úteis o mesmo percurso, a pé, para o local de trabalho. De tanta ida e volta, os sapatos rasos de Leopoldina estão marcados no passeio e todos respeitam estas marcas como se fossem uma passadeira válida apenas para ela.
Durante o tempo que passou entre as três cervejas a acompanhar um café com cheirinho e o despedimento de Silva, Leopoldina fazia este trajecto em passo acelerado e quase ficou em forma para o Lima...queria usar na noite de lua-de-mel um cuecão reduzido!
Sempre trabalhou no notário da terra (apesar de quase ter sido decoradora, o seu sonho, quando viu um anúncio no jornal) e há tanto tempo, que sente que foi prometida, pela mãe, para aquele trabalho. “Ainda bem!”, relembra-se amiúde. Caso tivesse sido prometida ao filho de um casal qualquer, nunca teria vivido a grande estória de amor.
Como quase foi mãe, caso tirasse o cuecão reduzido na lua-de-mel se o Silva não tivesse sido despedido, sente-se por isso abençoada e com jeito para as crianças. Sempre que um casal amigo quer passar um serão romântico, na cervejaria “Albuquerque” a comer uma francezinha e a beber uma cerveja, ela oferece-se para tomar conta das crianças.

Nestes serões com as crianças, gosta de falar de si, elas ouvem atentas, e pacientes, escutam a vida quase feliz de Leopoldina!

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Liberdades

Félix, assina, como no bilhete de identidade, Felix Da Silva De Pereira e é conhecido em casa por pai e “óme”, mas é mais conhecido entre os amigos por Félix e mais conhecido entre os conhecidos por Félix. Quando conhece alguém apresenta-se como Félix Da Silva e entre quem não o conhece é conhecido por “aquele gajo, pá!”.
Em Março de 1974 fez quatro anos de casado, cerimónia que aconteceu em 1970, após a chegada de uma missão de dois anos e meio no norte de Moçambique, onde fez amizades de sangue que nunca esqueceu. Nesses quatro anos de alguma felicidade teve quatro filhos da mulher, a quem os pais puseram o nome de “Maria”, porque desejavam que a filha fosse um exemplo de mulher, como a mãe de Cristo, e “do Céu”, porque a mãe, devota seguidora do padre da aldeia, gostava de uma passagem da homilia, em que se faz referência à “Glória ao Céu”.
Com quatro gravidezes e actividade física restringida às lides domésticas e a tratar dos filhos e do “home”, o corpo de Maria do Céu tornou-se desinteressante (sem nunca o ter sido) aos olhos de Félix. O casamento pela igreja e a “vergonha” não davam coragem a Félix para deixar a mulher, apesar de ele ter a certeza que era isso que queria nos festejos do  quarto aniversário. Precisava de uma reviravolta na sua vida!
Um mês depois aconteceu uma reviravolta ao país, através de um golpe de estado, com o objectivo (aparente) de Democratizar, Descolonizar e Desenvolver.
Félix Da Silva De Pereira não era muito inteligente, mas não se deixava ir pelas “ondas como os cardumes” e apercebeu-se que o “Democratizar” aconteceu por um triz, visto que alguns (talvez a maioria) capitães de Abril queriam acabar com uma Ditadura de Direita e impor outra, tornando Portugal um país satélite da União Soviética; o “Descolonizar” foi apressado, fazendo 500.000 portugueses voltar à metrópole, sem nada, e deixando as ex-colónias entregues a facções armadas e a população africana desprotegida; e o “Desenvolver”, através de uma reforma agrária medieval!
- Isto eu não festejo! – Pensou Félix, ainda longe de imaginar o que esperava o país, a nossa “classe política”.
Mas graças ao 25, Félix festejou os dias 26, 29 e 30, datas correspondentes aos seus 3D’s de Abril.
Festeja o “Divertir”, a 26 de Abril. Sem medo junta-se com os amigos na mesa do café ou na rua e expressa as suas opiniões e no fim vai para casa em vez de ser preso…não imaginava que fosse tão animado falar sem ser em surdina e a espreitar por cima do ombro!
A 29 de Abril festeja o “Divorciar”. Foi neste dia de 1974, que chega a casa com os papéis para o divórcio e encontra a mulher de mini-saia, a mostrar as “carnes” e a fumar SG Gigante e com uns papéis de divórcio, também na mão. Foi um espanto para ele…sempre pensou que Maria do Céu fosse feliz, a cozinhar, a limpar, a “apanhar” de vez em quando e a cuidar dos filhos e dele!
No dia 30 terminam os festejos de Abril, com o último “D” de “(en)Dividar”, o maior rasgo de desenvolvimento e modernidade português.
Neste dia de 74, Félix foi ao banco onde trabalha o amigo Tone e pergunta-lhe pelo estado da “conta”.
- Não tens dinheiro…mas também não deves nada a ninguém! – esclarece Tone.
- Está mal! – Responde Félix, continuando – Dá-me um crédito qualquer que me crie dívida.
Ao longo dos anos, Tone deu-lhe créditos para tudo, tornando Félix numa personalidade fiscal falida, mas moderna!


Nos festejos dos quarenta e um anos dos 3D’s de Félix, este foi obrigado a festejar o “dia da liberdade”, o 25, de cravo na lapela pela PDPC-DGS (Polícia do Politicamente Correcto-…)…mas o “D” de “Democratizar” vai festejar às escondidas desta, ao celebrar os quarenta anos do 25 de Novembro de 1975.

domingo, 22 de novembro de 2015

Sujeição

Quase tudo se sujeita a algo! A intenção à pontuação, as palavras à expressão, o corpo à alimentação, as árvores ao vento (e o meu penteado, também), a beleza aos olhos de alguém, o comportamento às leis (e o fora de jogo, também), a História a quem a escreve, a postura à aceitação (a não ser que sejas o dono da bola), o apetite à fome, a corrente ao declive, os olhos à luminosidade, as rugas ao sorriso e ao choro (e aos cremes, também), a felicidade a ti (e a tristeza, às vezes, também), a vitória ao adversário (ganho sempre, se perdi, esqueci!), a saudade a quem está ausente, o caminhar à vontade, o trabalho à necessidade, a Natureza ao Homem (ontem transplantei oito gardénias), a espécie extinta à vaidade (menos o tamagochi?!),...
Quase tudo é subjectivo, sujeita-se a algo! E como costuma dizer um amigo meu, do alto da sua sabedoria, quando alguém opina sobre qualquer coisa, “Depende!”.
Para ele quase tudo “Depende” e facilmente é confundido como “gente sem opinião”. Mas é dos raros com o dom de “desacelerar” e pensar. Facilmente chega à conclusão que as poucas certezas que tem são as da matemática e os resultados que as contas de “mais”, de “menos”, de “dividir” e de “vezes”, lhe dão.
Sem hesitar diz que “2+2”, são “4” e quando alguém fica a pensar com dúvidas sobre o resultado de “8x7”, de postura rija e cheio de autoridade, responde, “56”.

Tudo se sujeita a algo! Até a matemática a algumas teorias, o Manel sempre à Maria, o papel à mão que escreve, o convívio aos amigos (e ao copo de vinho), o José ao Calheiros (senão era outro), o livro ao leitor, o pavão à apreciação (da pavoa!), a velocidade ao limite (no meu caso ao limite inferior),..., e todos nós à comparação (para a minha mãe sou o melhor).
Tudo é subjectivo, sujeita-se a algo! E como costuma dizer um amigo meu, do alto da sua sabedoria, quando alguém opina sobre qualquer coisa, “Depende!”.
Para ele tudo “Depende” e facilmente é confundido como “gente sem opinião”. Mas é dos raros com o dom de “desacelerar” e pensar. Facilmente chega à conclusão que certezas não tem nenhuma, nem quando fala das contas de “mais”, de “menos”, de “dividir” e de “vezes”, da matemática.
Para ele “2 e 2”, não são “4” e quando alguém fica a pensar com dúvidas sobre o resultado de “8 e 7”, de postura rija, responde, “Depende do sinal que puseres entre os números”.


Não existe uma realidade, mas tantas quantas pessoas existem! Quem tem razão? Depende!

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Massificação

Tinha o sonho de ser um comando, daqueles que destroem exércitos inteiros…até ir para aquela escola! Nessa escola fiz dois amigos para a vida inteira, o António, que queria ser palhaço, e o Joaquim, que queria ser girafa no Jardim Zoológico (apesar  da baixa estatura, ele tinha muito jeito para imitar as girafas).
No primeiro momento dentro da sala de aulas, a professora, de farda cinzenta, sem maquilhagem e traços rudes, que quase se confundia com um homem, disse-nos:
- Se tendes sonhos, é melhor secá-los. Ides ser todos iguais.
Durante os anos foi-nos ensinada a imoralidade da individualidade, de ter sonhos e de alcançá-los. Impuseram-nos uma felicidade baseada no medo do sucesso (fosse material ou não).
Apesar do meu sonho de menino, aquelas primeiras palavras de há sessenta anos atrás foram um consolo! Como fiquei com medo de ser bem-sucedido, deram-me a mim e aos outros, naquela escola, o conforto da mediocridade.
Nunca ninguém se destacou, nem o que estudava e tirava boas notas, nem os calaceiros (aquilo em que me tornei), com as suas notas suf -.
Não havia mais bonitos e mais arranjados, o pentiadinho tinha o mesmo sem brilho que aqueles que não tomavam banho.
Disse à minha mãe que não precisava de comprar mais perfume, nem pentes para me aprumar logo pela manhã! Por isso e com o passar do tempo, de mais bonito, passei a ser mais um, que namorou com mais uma…e deixámos de ter nome e uma imagem, mas deram-nos uma farda e ficámos todos iguais. Com dificuldade distinguia a rapariga de quem gostava, quando estava junta com as amigas! Ainda hoje tenho dúvidas se a miúda a quem pedi em casamento e hoje é mãe dos meus cinco filhos é a rapariga de quem gostava! Mas também não faz mal, eram todas muito parecidas e interessantes da mesma maneira. As conversas que tinha com uma ou com outra ou até com outro eram todas iguais. Pensávamos o mesmo sobre os mesmos assuntos, tanto naquilo com que concordávamos, como naquilo que nos indignava ou aquilo a que simplesmente encolhíamos os ombros, tudo aprendido do mesmo manual e ensinado pela mesma professora! Não sei o que é discordar dos meus camaradas, denominação ensinada na escola, e nunca discuti com a minha mulher…apesar das dúvidas que ainda tenho sobre ela ser a certa!
Para matar saudades e tentar confirmar quem é aquela que tenho em casa, por vezes olho para uma fotografia de grupo tirada naquele tempo, salvo erro no quarto ano, todos simples, como se quer, apesar de um simplório destoar, o mesmo corte de cabelo, a mesma expressão zangada (aprendida nesse ano) e cinzenta (aprendemos a não sorrir no terceiro ano). Não distingo ninguém, aliás minto, vejo um de nós a esticar o pescoço, e aposto que é o Joaquim, que no seu íntimo nunca deixou de querer ser girafa…era um rebelde. Partilhávamos o mesmo quarto e durante a noite ele ousava sonhar com cores, quando, ainda no primeiro ano, aprendemos a sonhar entre o cinzento e o preto.

O que no início me assustou e depois me consolou, foi que o “MAIS” valia o mesmo que o “MENOS”!