domingo, 30 de novembro de 2014

Anuidade.

- Quero uma cerveja!
Foi o pedido daquela figura alta, magra e de óculos escuros, que mesmo com os olhos escondidos senti que sorriam.
Eu estava sentado ao lado, ambos ao balcão do café.
- O amigo gosta de cerveja! – digo-lhe, como que querendo descobrir aquela personagem, que nunca vi no café.
- Muito – responde-me.
- Pago-lhe outra. – disse-lhe e de braço em riste virei-me para quem atendia - Menina, mais duas cervejas.
- Não, não. – reponde-me pronto a pessoa, baixando-me o braço.
Saca de agenda, já de 2015, e aponta algo no mês de Novembro.
- Zé, eu sou o Zé! – apresento-me - E o amigo?
- Eu hoje sou o António e volto a sê-lo no dia 30 de Novembro de 2015. Se por acaso amanhã me encontrar, teremos o mesmo nome! Amanhã sou o Zé.
Intrigado, quis saber ainda mais sobre aquela figura caída do céu.
- E então, mora por cá?
- Sim, já há três anos.
Depois de devidamente explicado, fiquei a saber que o António é meu vizinho. Mora em frente a mim, onde dorme uma vez por ano. Fiquei a saber, também, que gosta de andar de bicicleta e de jogar futebol…tal como eu!
- Logo quer vir jogar à bola? Falta-nos um. – convido-o, como forma de o integrar no meio.
- Aaah, que pena! Gostava, mas já joguei hoje de manhã.
- Aaah! Então conhece gente aqui! – constato, com alguma alegria.
- Sim, sim, e costumo estar com eles…no dia 30 de Novembro de todos os anos, da parte da manhã, para jogar à bola, e no primeiro sábado de Setembro, para um passeio de bicicleta, que dura o dia todo…até me farto de os ver!
- E como é que eles te conhecem?
- Na bola, por António, no passeio de bicicleta, por Fredo.
Num instante a expressão serena de (neste dia) António, esfria.
- Passa-se alguma coisa, amigo? – pergunto.
- Aquele ali! - com o dedo a apontar para o exterior do café, onde passava o tipo dos seguros, e prosseguiu – Encontrei hoje uma carta, colocada por baixo da minha porta a informar que vou estar isento do pagamento anual do seguro do carro, por dois anos…não tenho acidentes, dizem que é um bónus! Pudera, eu só pego no carro uma vez por ano. Tinha uma vida preenchida, com acontecimentos anuais todos os dias, agora fico sem ter o que fazer no dia 29 de Agosto!
- Mas o que faz nesse dia, António? – pergunto.
- Para começar, nesse dia sou o Mendes. Pagava o seguro!
Neste momento senti o António perdido.
- Ó António, só se quiser combinar para esse dia uma cervejinha…aqui no café!
- Não pode ser, já venho aqui neste dia. Pode ser um pingo, no café ao lado?
- Está combinado!
- E nesse dia sou o Mendes. Não se esqueça!
A conversa foi-se desbobinando, estranhamente, de forma natural e nesta figura de hábitos peculiares invejei o facto de a sua mulher fazer-lhe todas as noite bacalhau.
- E não se enjoa?
- Não! - respondeu-me. – conheci-a no dia 1 de Dezembro de 2011, da parte da manhã e namoramos da parte da parte e logo aí combinamos casamento para o ano seguinte. Foi no dia…
- …1 de Dezembro de 2012! – completei.
- Esteve lá?
- Não! Foi um palpite. Continue.
- E desde que casei, sempre que estou com ela faz-me bacalhau. Já comi duas vezes…amanhã é a terceira! – e sorri. - Estou ansioso por estar com ela. Viram-na e disseram-me que ela está grávida de quatro meses…vou ser pai!
- Parabéns! – disse-lhe, sem estar convicto das minhas palavras.


Despedimos-nos e no telemóvel registei o dia 29 de Agosto.

domingo, 23 de novembro de 2014

O Mundo ao contrário

Aquele final de tarde foi o “abrir de olhos” de uma realidade que eu não queria ver. Os últimos tempos tinham sido de exageros e descuidos aos quais tinha que pôr fim.
Após ouvir na rádio que meia dúzia de políticos, promotores imobiliários e banqueiros tinham-se entregue no posto de polícia mais próximo, eu decidi parar no primeiro consultório médico por onde passa-se.

- O que vem cá fazer? – perguntou-me o médico.
Contei-lhe a última noite, passada entre amigos abstémios, numa festa de arromba na margem do rio, que desagua no monte, e onde bem perto três pescadores atiravam peixes para a água. Comi um peixe grelhado e duas sopas sem sal, acompanhados por água, a meio da noite virei-me para os digestivos, passando a beber águas com gás e terminando com chá! Deitei-me cedo…antes da meia-noite! Como é óbvio, acordei bem disposto.

Depois da explicação o médico mandou-me fazer análises.

Uma semana depois, no consultório, assustava-me a cara do médico enquanto olhava para os resultados.
- Então, Sr Doutor?!
- Meu amigo, as suas análises estão óptimas! Todos os valores estão correctos. É urgente mudar de hábitos. Anda no ginásio?
- Sim! – respondo.
- Pois! Mas convém parar.
Em vez do ginásio, aconselhou-me um pasteleiro, para fazer uma avaliaçao física. Além disto receitou-me fritos, doze em doze horas, a meio das manhãs um bolo com creme ou uma bola de carne e a meio das tardes um gelado de chocolate ou uma torta de noz. Doze em doze horas Whiskovirax e bagaced, sempre em jejum.
- Isso são comprimidos ou xaropes? – pergunto.
- Amigo, são garrafas e toma-se ao copo. E para não ser muito dura a dieta, ao fim de semana pode ter um miminho, no sábado ou no domingo pode-se lambusar numa pescada cozida.

Saí do consultório directo para a pastelaria “Ricochete” e pelo caminho passei no supermercado para aviar a receita.
Chegado à “Ricochete”, sou atendido pelo PT (pasteleiro trainer), um verdadeiro “pipo”.
- Com que então, corpinho em “V”! – diz-me – Vamos transformá-lo em “B”.
Começamos com um “Teste de Cooper”, para avaliar quantas bolas de berlim conseguia comer em doze minutos – Fraquinho – diz-me o PT, passado o tempo da prova.
Delineou-me um plano de treinos:
20 minutos de aquecimento, sentado na mesa 1 a comer torradas lambusadas em manteiga saturada; depois passo para a mesa 3 e faço três séries a comer natas (8 natas por série), depois salto para a mesa 7, para um “Drop set” a comer biscoitos caseiros. No fim, 20 minutos de cárdio, sentado na esplanada a fumar.
Cumpri este plano durante um mês, três vezes por semana, ao fim do qual fiz novas análises.

Na expressão do médico, adivinhava um sorriso que não se mostrava.
- Está no bom caminho, amigo! Já tem os triglicerídeos e os …, todos errados! Com calma e paciência o amigo fica um obeso mórbido e, com um bocadinho de esforço, disciplina e alguma sorte, ainda morre, antes do tempo, de ataque do coração!

Saí do consultório feliz com as novidades para contar à minha mulher. Quando toco à campainha de casa, o PT abre a porta e diz-me - Olá, meu amor!!!

domingo, 16 de novembro de 2014

Guião

Em virtude de uma ruptura muscular, há 4 semanas atrás, que me afastou das futeboladas com os amigos, comecei ontem a ser acompanhado por um psicólogo, que me disse, “Faça outras coisas.”…e fiz!
(a parte da lesão, contarei em pormenor noutro texto)
Tinha em “carteira” um guião escrito há já algum tempo e comecei a realizá-lo.
Depois de guionista, sou agora realizador e actor…e os meus amigos também, todos nós num total amadorismo, em que cada um faz de si próprio com interpretações soberbas. Como exemplo, foi excelente filmar o Miguel, a fazer de si próprio, a dormir, numa interpretação “oscariana”!
Data para o fim da filmagem não há. Se dependesse da minha vontade, seria rápido, mas esta nem sempre se concilia com a minha disponibilidade e da dos meus amigos actores. Como tal, será quando for e no final todos serão avisados.

Deixo-vos o início da estória, em “linguagem” de guião.

A vida de Gusto (igual à de quase todos)

INT. – CASA
Na sala, vê-se o aquário, a imagem vai rodando à volta dele e vê-se GUSTO, 40 anos e bem parecido, sentado, a contemplar os peixes. A imagem fica focada em Gusto, nostalgicamente triste e a cena seguinte é o regresso aos tempos de adolescente.

EXT. - ESPLANADA

Um adolescente sentado numa mesa de esplanada com uma chávena de café vazia à sua frente. ELA, bonita e morena, com grande carrapito lilás, chega, coloca-lhe a mão na cabeça, debruça-se sobre ele, aproxima a cara e dá-lhe um beijo.

MARIA
Olá Gusto! Tudo bem? Desculpa o atrazosito! Chegaste há pouco?

Ele olha para o relógio de pulso, volta a olhar para ela, que entretanto se sentou.

GUSTO
Olá Maria! Não, não, cheguei há pouco mais de uma hora e meia!

MARIA
(sorri)
Despachei-me só para estar contigo!

Aproxima-se o empregado do café

EMPREGADO
Vai desejar alguma coisa?

MARIA
Hummmmm, talvez um Frisumo de Ananás.

Após um compasso de espera.

EMPREGADO
Então? Talvez sim ou talvez não?

MARIA
(decidida)
Tenho a certeza que é um talvez sim!

O empregado afasta-se e Gusto e Maria, sentados, viram-se um para o outro. Ela com os braços pousados em cima da mesa, dona e senhora da situação, ele com os braços para baixo e as mãos debaixo da mesa, para esconder o nervossismo.

Depois de um compasso de espera.

GUSTO
Estás bonita!

MARIA
Obrigada!
(pausa breve)
Não notas nada de diferente?

GUSTO
Aonde?

MARIA
Em mim, meu lindo!

E encolhe os ombros, um pouco envergonhada pelo elogio feito ao Gusto.

Entretanto o empregado pousa a bebida em cima da mesa.

Após ouvir esta pergunta, feita ao ínício da tarde, ele não via nada de diferente nela, apesar do carrapito lilás, coisa que não tinha no dia anterior, quando se encontraram no mesmo sítio.

Maria fica a olhar para o Gusto, enquanto ele a fita de diversos ângulos sem ver nada de diferente.

GUSTO
Vou só à casa de banho. Quando tenho vontade de fazer chichi, fico muito distraído!

Ela sorri.

Ele levanta-se e vai directo ao empregado que também os serviu no dia anterior.

GUSTO
Ó senhor, desculpe! Eu ontem estive aqui com aquela minha amiga…

EMPREGADO
Sim, eu lembro-me!

GUSTO
Nota alguma coisa diferente nela?

O empregado desvia o olhar em direcção da mesa e após breve contemplação:

EMPREGADO
Não! Não vejo nada de diferente na menina!

Gusto regressa à mesa e senta-se.

MARIA
E então?

Gusto, com uma expressão desconfortável fica a olhar para a Maria. Olha para o relógio. A imagem fixa o relógio que marca 15h07m.

VOICE OVER
Há algo que o homem durante o seu crescimento não desenvolve, algo para o qual nem a sua mãe, no seu pleno amor, o preparou.

MARIA
E então?

O tempo passava e a tensão aumentava. Gusto olhava para a Maria sem vislumbrar nada de diferente na sua quase namorada. Olha para o relógio. A imagem fixa o relógio que marca 19h30m. A imagem volta ao casal na mesa. Ele arrisca responder com sinceridade, esboçando um sorriso tímido.

GUSTO
Não! Não vejo nada de diferente!

Perante a resposta, Maria, mexe no carrapito lilás meia dúzia de vezes, que fez antes do encontro, e em vez de acabar o namoro, diz baixinho com os dentes cerrados, fruto de uma raiva imensa.

MARIA
Ai não notas nada de diferente?! Havemos de casar e tu vais sofrer.

Câmara fixa Gusto que diz baixinho, para si mesmo:

GUSTO
Ela vai acabar o namoro!


LEGENDA – QUINZE ANOS MAIS TARDE

INT. – QUARTO

Gusto e Maria deitados na cama a dormir. Não falta muito para o despertador tocar.

domingo, 9 de novembro de 2014

O ritmo do tempo e o preço da idade

Quando olho para o meu álbum de fotografias, se começar a abri-lo pelo ínicio, pois tenho o hábito de abrir o jornal “O Jogo” pelo fim, encontro duas fotografias com três meses, seguidas de outras duas já com seis.
Convém recordar que tenho quarenta anos e que no ano de 1974 ter nos primeiros seis meses de vida quatro fotografias era uma extravagância e havia quem dissesse que me estavam a estragar com mimos!
Não me recordo de com três meses desejar ter seis, mas lembro-me perfeitamente de em criança os ponteiros pararem e o tempo não passar, e de um dia dos meus seis anos ter a duração de três dias dos meus quarenta.
Na primária, o tempo chegou a arrastar-se para trás, fruto de uma paixão correspondida, e sentia que o dia de casar com a Carlinha (sim, ela prometeu-me casamento a meio da 1ª classe) estava à distância do “além”, numa altura em que tudo o que era para amanhã era sempre distante demais!
Impaciente, aos treze anos queria ter dezasseis para parecer crescido (!) e aos dezasseis queria ter dezoito para ter a carta. Nunca estava bem com a idade que tinha, mas lembro-me de pensar “ No ano dois mil vou ter vinte e seis anos. Que velho!”
Não me senti velho quando lá cheguei, coabitando o mesmo espaço com os adolescentes, mas diferente deles no ritmo e também nas lamurias, uns praguejando porque o tempo não passava e eu a dar por mim a dizer “O tempo corre!”
E correu até aos trinta!
E aos trinta lembrei-me dos meus dezassete. E dos meus dezassete lembrei-me de um certo sábado à tarde, em que encontrei um amigo destroçado, a quem delicadamente perguntei:
- Estás todo lixado, Fernando! O que se passa?
- Faço trinta anos. - respondeu-me.
Com carinho consolo-o:
- Deixa lá, eu tenho dezassete!
E ele chorou e virou costas e foi-se embora e nunca mais me falou. Senti que ele trocava a idade que tinha pela minha.
Sugestionado por esse acontecimento treze anos antes, passei o dia 26 de Dezembro de 2003 ao lado de um desfibrilhador e acompanhado por um amigo psicólogo. Quando batem na torre da igreja as vinte e duas, hora em que nasci e marcou a minha entrada nos “trinta”, nada aconteceu! Um momento antes tinha vinte e nove no momento seguinte trinta. Nem uma depressão, nem nenhuma quebra física. O coração batia normalmente e nem uma mísera cãibra senti a denunciar o peso da idade! Que seca! Nada de extraordinário para relatar a não ser o facto de ter passado a noite a ouvir os desabafos do meu amigo psicólogo a sofrer de mal de amor e, ao contrário do Fernando, não trocar o actual número por outro abaixo.
Espirrei e sem dar conta fiz quarenta. Agora, a dois meses de fazer quarenta e um, o meu irmão fez trinta e oito e chamei-o de “velho”… ele sorriu. O sorriso era acompanhado de um pensamento, ao qual respondi “Rejuvenesce-se a partir dos quarenta! Vais ter de esperar mais dois anos.”

Nunca mais soube do Fernando e o meu amigo psicólogo, sempre que pode, passa por minha casa para desabafar e, por enquanto, continuo a não trocar o meu número actual pelo anterior!