domingo, 22 de fevereiro de 2015

A vida são só mais dois dias

António Gregório, colega de turma e mais fino do que o Chico, que tem a mania que é esperto, sempre se foi safando das trapalhadas em que se metia, ou fazendo-se de vítima ou caindo em graça, sendo por vezes o preferido da professora, quando quem tinha o verdadeiro sentido de humor era o Manolo, alcunha do Ferreira, que sempre que a professora propunha uma visita de estudo a Organizações com regras e bem sucedidas, ele propunha um passeio a Vigo...o quanto o Ferreira gostava de espanholas, de caramelos e do falar alto e estridente nos cafés, em que todos se atropelavam verbalmente.
Na entrega do último teste, Ferreira teve Suf – (suficiente menos), que lhe criou um sorriso rasgado, pelo melhor nota do ano; Chico tirou Suf - - ( suficiente menos, menos), finório como todos os seus antepassados, riscou o - - (menos, menos), para mostrar à mãe uma boa nota; e o Gregório não teve nem bom nem mau, teve uma nota dada pela primeira vez pela professora Angela.
- Gregório, tiveste péssimo no teste.
- Se tive péssimo, a culpa não é minha professora. A culpa é do Chico!
- Ui! – exclama a professora Angela e o Chico e a professora prossegue – Como assim?
Como se já esperasse a pergunta, Gregório dispara a resposta:
- Porque eu copiei a maior parte do teste pelo Chico. E ele respondeu mal ás perguntas que eu copiei de propósito...só para me prejudicar!
O Suf - - de Chico foi a sua pior nota deste ano. Chico costuma copiar por Henrique, um miúdo loiro e olhos azuis, supostamente de boas maneiras e regras, que beneficia Chico se este for buscar a bola, quando nas futeboladas esta vai para longe. Chico passa grande parte do jogo a apanha-bolas do que propriamente a jogar.
Este facto criou desconfiança na turma e perante a dúvida a professora corrigiu a nota de Gregório para Suficiente!
Gregório, mais fino do que o Chico, que é esperto, de papo cheio, sem ar para o ter, e sorriso aberto, sem meia dúzia de dentes para mostrar, acha-se o maior e desvairado pede:
- Professora, além da nota positiva eu quero 10 € para ir comprar chocolates, para festejar.
- Ó Gregório, tu ainda não me deste os 5 €, que te emprestei, para ires comprar gelados quando pediste a Catarina em namoro e ela disse que ia pensar. Dois dias depois ela disse-te que não, mas isso não te dá o direito de não me pagares e acumulares dívida.
- Acumular o que, professora?
...
Naquela escola, a vida continuou na normalidade que se tinha transformado nos últimos anos, desregulada para uns, sem sentido para outros e no caminho certo para dois ou três, até aquele dia, em que uma directiva ministerial ordenava que todos os alunos e professora morressem ao fim de dois dias.

Ao terceiro dia, toda a turma estava ainda por falecer, porque o António Gregório, mais fino do que o Chico, que é esperto, teimava em não morrer, dizendo:
- Não posso morrer, ainda tenho dívidas para saldar!

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Costumes e culinária

Dona Maria, senhora das suas saias e das suas mãos, cujo marido diz serem de fada, apesar dos calos por muitos anos de trabalho no campo, nunca foi dada a modernices. Sexo foi sempre debaixo dos cobertores e apesar da barriga que já se notava quando foi levada ao altar, dizia aos netos e principalmente às netas – “O vosso avô nunca me viu nua nem nunca me tocou” - como se isso lhe aliviasse o pecado. E nunca foi dada a experimentalismos, sendo ela uma grande cozinheira, cuja arte tinha aprendido de sua mãe, que por sua vez tinha aprendido da mãe dela… nunca dispensou os seus tachos e panelas e renegou sempre a “panela de pressão”, desde aquele aniversário, ainda na década de oitenta, em que uma nora lhe ofereceu uma, de prenda. Dona Maria chamou-a, à panela, de “obra do mal” e à nora de “mensageira do Demo”. Possuída pelo desejo de vingança, a nora lançou o boato de que a prenda que a sogra mais gostava de receber era caixas de fósforos!
Escusado será dizer, que no dia seguinte Dona Maria correu para a igreja, para contar o sucedido ao Padre António, levando meia dúzia de docinhos caseiros. Aliás, a gravidez, em tempo impróprio, foi perdoada por meio de uma confissão demorada, com o Padre António, na altura jovem, instalado há dois meses na paróquia e considerado o mais belo padre da diocese, e pela oferta de um pão-de-ló húmido por parte da Dona Maria, que o fazia como ninguém.
Mais velha, D. Maria julga que o Diabo já tomou conta de tudo e até dos netos e se dúvidas tinha, estas caíram quando a neta mais querida a visitou após umas férias de Verão, apresentando-se elegante, morena e bonita como nunca havia estado antes – “Cruz, credo, minha neta, como te puseste! Eras tão bonita…roliça e branquinha!”
A neta, condescendente, ouviu a avó e com todo o amor que nutria por ela, mostra-lhe um embrulho - “Vóvó, é para ti, para te ajudar a cozinhar.”, e sorri!
Com um sorriso, Dona Maria, abre o embrulho com o mesmo entusiasmo do costume, ou seja, pouco, pensando tratar-se da mesma prenda de sempre, desde aquele aniversário nos idos de oitenta, uma caixa de fósforos, apesar do tamanho do embrulho. 
Aberta a caixa, Dona Maria, espreita o seu interior e vê um aparelho estranho, fazendo-lhe lembrar a cara de um antigo pretendente dos tempos de criança, com aspecto maduro, que lhe tinha pedido em casamento ainda na primária!
- Casas comigo Maria? Eu já levo as vacas ao campo e bebo dois copos de vinho antes de vir para a escola.
O raio da geringonça tinha a cara do Neca, morto numa zaragata por causa de uma caneca de vinho fraco e mumificado na tasca da aldeia.
- O que é isto, minha neta?
- É uma Bimbi, Vóvó! Para te ajudar a cozinhar!
Sentindo-se insultada no seu conservadorismo e jeito para cozinhar, deserda a neta com o olhar e sai porta fora, não sem antes passar pela cozinha e pegar numa trouxa.
A caminho da igreja, Maria passa por Lurdes, pessoa com quem não gosta de falar muito. Rapariga atiradiça, sorria para os rapazes…diziam as mulheres da aldeia nunca reparando que Lurdes sorria para elas, também! Foi a única mulher com brilho naquele lugarejo.
- Dona Maria, fiz aquele bolo que disse, mas não saiu bem!
- Fez como eu lhe disse, Lurdes? Uma mão e mais um bocadinho de farinha, um naco de manteiga,  canela quanto baste,…, e deixou cozer até estar cozido?
- Fiz Dona Maria! Ah, e cortei, como me ensinou, um bocado no açucar.
- Não era um bocado, era um bocadinho. Por isso não saiu bem.
Sem querer adiantar conversa com gente pouco recomendável, despachou:
- Agora tenho que ir. Vou à igreja.
Ao longo das décadas, em momentos de desejo e nos últimos anos, mais de desespero, a seriedade de Dona Maria, levava-a sempre ao confessionário do Padre António, agora com visitas mais curtas…!
- A minha neta está possuída, Sr Padre! Ofereceu-me um aparelho do Diabo!
As conversas já há muito que descambam para o banal, tendo-se deixado de falar de pecados. Aos dois, já não havia quem os salvasse e, com o envelhecimento, foram passando de pecado em pecado, sendo agora o da gula o único cometido naquele confessionário

- Deixa lá, Maria! Que trazes?
- Jesuítas.