domingo, 8 de fevereiro de 2015

Costumes e culinária

Dona Maria, senhora das suas saias e das suas mãos, cujo marido diz serem de fada, apesar dos calos por muitos anos de trabalho no campo, nunca foi dada a modernices. Sexo foi sempre debaixo dos cobertores e apesar da barriga que já se notava quando foi levada ao altar, dizia aos netos e principalmente às netas – “O vosso avô nunca me viu nua nem nunca me tocou” - como se isso lhe aliviasse o pecado. E nunca foi dada a experimentalismos, sendo ela uma grande cozinheira, cuja arte tinha aprendido de sua mãe, que por sua vez tinha aprendido da mãe dela… nunca dispensou os seus tachos e panelas e renegou sempre a “panela de pressão”, desde aquele aniversário, ainda na década de oitenta, em que uma nora lhe ofereceu uma, de prenda. Dona Maria chamou-a, à panela, de “obra do mal” e à nora de “mensageira do Demo”. Possuída pelo desejo de vingança, a nora lançou o boato de que a prenda que a sogra mais gostava de receber era caixas de fósforos!
Escusado será dizer, que no dia seguinte Dona Maria correu para a igreja, para contar o sucedido ao Padre António, levando meia dúzia de docinhos caseiros. Aliás, a gravidez, em tempo impróprio, foi perdoada por meio de uma confissão demorada, com o Padre António, na altura jovem, instalado há dois meses na paróquia e considerado o mais belo padre da diocese, e pela oferta de um pão-de-ló húmido por parte da Dona Maria, que o fazia como ninguém.
Mais velha, D. Maria julga que o Diabo já tomou conta de tudo e até dos netos e se dúvidas tinha, estas caíram quando a neta mais querida a visitou após umas férias de Verão, apresentando-se elegante, morena e bonita como nunca havia estado antes – “Cruz, credo, minha neta, como te puseste! Eras tão bonita…roliça e branquinha!”
A neta, condescendente, ouviu a avó e com todo o amor que nutria por ela, mostra-lhe um embrulho - “Vóvó, é para ti, para te ajudar a cozinhar.”, e sorri!
Com um sorriso, Dona Maria, abre o embrulho com o mesmo entusiasmo do costume, ou seja, pouco, pensando tratar-se da mesma prenda de sempre, desde aquele aniversário nos idos de oitenta, uma caixa de fósforos, apesar do tamanho do embrulho. 
Aberta a caixa, Dona Maria, espreita o seu interior e vê um aparelho estranho, fazendo-lhe lembrar a cara de um antigo pretendente dos tempos de criança, com aspecto maduro, que lhe tinha pedido em casamento ainda na primária!
- Casas comigo Maria? Eu já levo as vacas ao campo e bebo dois copos de vinho antes de vir para a escola.
O raio da geringonça tinha a cara do Neca, morto numa zaragata por causa de uma caneca de vinho fraco e mumificado na tasca da aldeia.
- O que é isto, minha neta?
- É uma Bimbi, Vóvó! Para te ajudar a cozinhar!
Sentindo-se insultada no seu conservadorismo e jeito para cozinhar, deserda a neta com o olhar e sai porta fora, não sem antes passar pela cozinha e pegar numa trouxa.
A caminho da igreja, Maria passa por Lurdes, pessoa com quem não gosta de falar muito. Rapariga atiradiça, sorria para os rapazes…diziam as mulheres da aldeia nunca reparando que Lurdes sorria para elas, também! Foi a única mulher com brilho naquele lugarejo.
- Dona Maria, fiz aquele bolo que disse, mas não saiu bem!
- Fez como eu lhe disse, Lurdes? Uma mão e mais um bocadinho de farinha, um naco de manteiga,  canela quanto baste,…, e deixou cozer até estar cozido?
- Fiz Dona Maria! Ah, e cortei, como me ensinou, um bocado no açucar.
- Não era um bocado, era um bocadinho. Por isso não saiu bem.
Sem querer adiantar conversa com gente pouco recomendável, despachou:
- Agora tenho que ir. Vou à igreja.
Ao longo das décadas, em momentos de desejo e nos últimos anos, mais de desespero, a seriedade de Dona Maria, levava-a sempre ao confessionário do Padre António, agora com visitas mais curtas…!
- A minha neta está possuída, Sr Padre! Ofereceu-me um aparelho do Diabo!
As conversas já há muito que descambam para o banal, tendo-se deixado de falar de pecados. Aos dois, já não havia quem os salvasse e, com o envelhecimento, foram passando de pecado em pecado, sendo agora o da gula o único cometido naquele confessionário

- Deixa lá, Maria! Que trazes?
- Jesuítas.

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