domingo, 30 de março de 2014

A seis meses da reforma.

A sessão de cinema ainda nem a meio tinha chegado e António Neves já suspirava de tédio. Quando aparece a cena em que a personagem principal se reforma aos sessenta e seis anos ele desiste e tenta dormir.
Ao primeiro ronco, sente um cotovelo a bater-lhe, acompanhado de uma voz:
- Acorda vozinho! Estás a fazer barulho!
Sobressaltado, António Neves acorda, e meio perdido exclama – Ah, ah, o quê? – e apercebe-se do sítio onde está. Foca-se novamente no ecran e vê outra cena, desta vez da personagem secundária a ser reformada condignamente aos sessenta e seis anos - “Poça, estou farto disto!” – pensa. Depois, baixinho diz:
- Rapazes, espero por vós lá fora.
Quase uma hora depois, no pano branco aparece a palavra “Fim”, acendem-se as luzes e as pessoas começam a abandonar a sala. Toninho e Nuninho deixam-se estar sentados e são os últimos a sair. Dirigem-se para António Neves, o bisavô, que esperava no exterior do “Cine-teatro Alves da Cunha”.
- Então vozinho, não estavas a gostar do filme?
- Não, rapazes! Nunca gostei de filmes de ficção científica. Se fosse uma cowboyada…isso é que eu gosto!
- Não gosto! – respondem os bisnetos ao mesmo tempo.
- Ah, isso sim, são filmes! Aqueles índios e cowboys na Assembleia da República aos tiros uns aos outros…! – e é interrompido por espasmos, sintoma de uma doença grave e galopante, detectada há pouco tempo.

No país de António Neves, que ainda não é Portugal (mas por pouco tempo, digo eu), as pessoas reformam-se automaticamente, quando morrem, a título póstumo. Mas quando a morte é repentina, sem causa aparente, por suicídio ou provocada por acidente automóvel em que o falecido é culpado, se não for devidamente justificada, a reforma para o defunto é posta em causa e faz todo o sentido…há por aí muito “chico-esperto” a “falecer-se” de forma danosa para o Estado!
Quanto a António Neves, oitenta e nove anos e viúvo há dois, altura em que a esposa se reformou, sempre foi cumpridor naquilo que são as suas obrigações, para assegurar uma morte confortável e sossegada. Como a sorte, mais tarde ou mais cedo, bate à porta dos correctos, a António Neves, foi diagnosticada uma doença rara que lhe dava mais seis meses de vida.
Foi uma alegria lá em casa, quando António Neves, mais para lá do que para cá, anuncia entusiasmado aos filhos, netos e bisnetos:
- Vou morreeeeer!
- Quando? – perguntam alguns.
- Daqui a seis meses no máximo. – responde o patriarca da família Neves.
- Que bom, pai! – comenta o filho mais velho – Seis meses dá para tratar da reforma com calma.
Com a serenidade devida, que os seis meses lhe proporcionavam, António Neves tratou de toda a papelada e selos necessários. Na última ida à Segurança Social, vindo de uma consulta no Hospital, depois de um dia de trabalho, ficou acertada com a senhora que o atendeu a data do seu falecimento…seria entre o dia 05 e 28 de Maio. Antes de sair do balcão, António Neves ouve as últimas palavras da funcionária:
-…e se ao fim de cinco dias úteis após o seu falecimento, não receber o papelzinho da Segurança Social, passe por cá.
- Muito bem! – responde simpático, António Neves, apesar da debilidade física.

No dia 15 de Maio, António Neves falece, Nuninho e Toninho comentam entre si – Ainda bem, o vozinho já merecia a reforma. Foram setenta e oito anos a trabalhar!
Passados cinco dias úteis, ao caixão não chega nenhum papelzinho, mas ao sexto, António Neves é enviado para o Céu. Quando se apercebe onde está, pensa – “Aqui não devo precisar de nada, dizem que é o Paraíso, que se lixe o dinheiro da reforma!”. Mal termina este pensamento é abordado por um santo, que enquanto lhe entrega um uniforme, explica-lhe:
- Sabe Sr António, aqui o senhor vai ter que continuar a trabalhar por mais dois anos. O Altíssimo não soube governar o Céu e estamos debaixo de um resgate, encabeçado pelo Diabo!
- O quê, depois de morto vou ter que continuar a trabalhar?! – questiona António Neves, completamente aparvalhado.
- Pois é, isto aqui está infestado de Querubins e Serafins! Enquanto o Senhor não fizer a reforma do Céu, nós, os anjinhos, vamos continuar a trabalhar!

Cá em baixo, no país que foi de António Neves, a sua família continua a trabalhar feliz e a pensar que quando morrerem vão poder reformar-se!

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