domingo, 22 de dezembro de 2013

Morreu o Maior.

Desde que me lembro de mim como pessoa, lembro-me do Maior sempre presente, mesmo quando estava ausente!
Os domingos na casa do Maior eram cheios, onde ele reunia a família e no topo da mesa, onde se sentava, os olhares e as conversas passavam por lá…era bem-disposto e gostava de conversas animadas e para completar este quadro de desordem feliz, lá estava a Pantera, a cadela da casa!
A meio da tarde rumávamos ao Cine-Teatro Alves da Cunha, com balcão e onde a primeira fila da plateia eram cinco cadeiras, propositadamente lá instaladas, para mim, para o meu irmão e os meus primos. Estávamos tão próximos da tela que éramos engolidos por ela e sentíamos-nos personagens dos filmes!
O Cine-Teatro Alves da Cunha, foi mandado construir pelo pai do Maior, depois de em finais da década de 20 do século passado, a sala de espectáculos existente na Trofa, ter-se incendiado. Além da sala de espectáculos, o pai do Maior tinhas outros negócios, que lhe valiam respeito, mulheres e muitos filhos bastardos. Tudo isto associado ao fervor republicano, e os fervores não são bons conselheiros (digo eu), o pai do Maior deixou-lhe de herança, não dinheiro, mas o gosto pelas mulheres e uma vontade férrea para fazer o seu caminho!
Já aqui vos mostro que o Maior não é Deus, não quero desumaniza-lo, o Maior era gente!
Gente com a certeza de que o caminho para ter as coisas era o trabalho e ainda adolescente trabalhava numa fábrica e no final fazia uns biscates de electricista. Um desses biscates, num final de tarde, foi na fábrica de chapéus do tio do Maior. Imagino-o a passar os olhos pelas empregadas, mas ao olhar para uma, os olhos param e não avançam. Ela chama-se Maria e o Maior ficou encantado!
Ficando a saber que a Maria tinha vários pretendentes, o Maior tinha a seu favor o facto de ser sobrinho do patrão, mas não queria usar essa arma. Um dia chegou à fala com ela oferecendo-lhe um quilo de figos.
Começaram a namorar, casaram e tiveram duas filhas. E desde que ofereceu esse quilo de figos à Maria, a mulher mais admirável e das mais bonitas que alguma vez conheci, a vontade férrea do Maior em busca de trabalho, para a família estar bem, levou-os por vários sítios. Para a Maria, na altura, apesar das dificuldades, o mundo perfeito era quando estavam os quatro, juntos!
Novamente na Trofa e já definitivamente instalados, uma empresa com duas áreas de negócios começa a crescer, fruto do trabalho do Maior. Uma de electricidade, que lhe valeu instalar a rede eléctrica em Trás-Os-Montes (para quem estiver a ler este texto e estiver nesta região, é provável que todos os postes que ainda existam de madeira, tenham sido instalados por ele e os empregados), e outra, fruto de um encanto de menino, o cinema!

Tenho bem presente, alguns dias, ainda pré-adolescente, em que o Maior me tirava a um dia de brincadeira e punha-me a levantar postes com os empregados. Desde cedo sempre quis mostrar a mim, ao meu irmão e aos meus primos, que sem trabalho não se consegue nada…esse é o segredo…nós não entendíamos!
Com os anos a parte eléctrica foi dando lugar ao cinema e o Maior na década de 80 do século passado era o maior empresário cinematográfico do país, não contando com a Lusomundo, que além de exibidores, também eram (e ainda são) distribuidores, de quem o Maior era o melhor cliente.
Depois veio o vídeo e mais tarde os Multiplex e já ninguém ia aos Cine-Teatros ver filmes. O que se ganhou foi-se perdendo, tendo o Maior vendido a sua última casa, o Cine-Teatro de Anadia, à Câmara local.
Apesar do que ele construiu e perdeu, via nele sempre uma inocência de criança, que não entendia e que o prejudicava. O Maior acreditava nas pessoas, acreditava na palavra dada e no aperto de mão. Desiludiu-se imensas vezes e mesmo assim não deixava de acreditar nas pessoas!!!
Após a “queda” e já mais velho a vontade de continuar a ganhar mundo e de trabalhar eram injecções de rejuvenescimento…e em vez de descansar carregou o cinema às costas!
Se em excursões, as pessoas do interior vinham ver o mar, o Maior e o seu cinema itinerante levaram a sétima arte às pessoas do interior. Tive a felicidade de, nas minhas férias da escola, fazer milhares de quilómetros com o Maior. Não raras vezes, quando chegávamos ao fim do mundo, eu perguntava:
- Já chegámos?
E ele respondia:
- Não! Ainda falta um bocadinho.
Quase sempre, quando parávamos para além do fim do mundo, a surpresa acontecia! Com o Maior fiquei a saber o quanto Portugal é bonito e a perceber as suas gentes…e a ele também!
Ele afinal era como aquelas pessoas do interior, gente de uma palavra e o aperto valia o mesmo que uma assinatura…confiavam uns nos outros! Por isso ele se sentia tão bem, lá!

Foram milhares de quilómetros, milhares de discussões, milhares de pontos de vista diferentes…e milhares de abraços que não te dei! Pensei que tinha todo o tempo do mundo, afinal eras o Maior…e dou por mim a pensar cada vez mais como tu!

Em Março de 2007, a mulher sempre presente, a Micas, como o Maior gostava de a tratar, devido a doença prolongada morreu numa madrugada de sexta para sábado, às quatro da manhã. O Maior passou o resto da noite a falar com a Micas e tenho a certeza que lhe pediu desculpa de algumas coisas…afinal o Maior é humano!

A morte da Maria, a pessoa mais admirável que conheci, foi uma grande perda!

O maior sentiu muito, mas continuou a trabalhar, voltou a casar e a divorciar-se vinte dias depois (é mesmo o Maior), e eu, o meu irmão e um primo, continuávamos a ir com o Maior, por vezes, a uma tasca a Vizela, comer e beber, que alimentava acesas discussões, muitos pontos de vista diferente…e quem estivesse a observar, facilmente se apercebia o quanto aquelas pessoas se gostavam!
Aos oitenta e quatro anos o corpo do Maior começa a fraquejar e sinais de senilidade começaram a aparecer. Quando a boa vontade já não era suficiente para cuidar dele, foi para um lar, na Trofa. “Arrebitou” com a presença das meninas que cuidavam dele e mesmo na doença, levou-nos para um mundo que já existiu e no qual mergulhávamos com ele!
Os nossos encontros eram viagens no tempo, ao estilo “Good bye Lenin”, onde na cabeça do Maior estávamos ainda na década de oitenta, e falávamos da programação para os cinemas, se tinha ido buscar o amplificador à oficina e enviado a publicidade para a Régua,…e de repente o lampejo de realidade e de falta surgia com a pergunta:
- A Micas?
A saúde continuou a degradar-se e começou a fazer umas “visitas” ao hospital, cada vez mais prolongadas. Na última “visita”, não iria regressar ao lar e na minha última visita que lhe fiz, estava ali o corpo do Maior, que só respirava, mas ele já não estava lá…mas os olhos brilharam e captaram a minha atenção!
Estava sozinho. Debrucei-me ao nível da cabeça dele e “espreitei” para dentro do seu olhar. No fundo dos olhos do Maior, via-o sentado no escritório a preparar a programação para o mês de Dezembro nos seus cinemas…e sorri! Dois dias depois, morreu.

21 de Dezembro de 2013, o Maior foi enterrado depois de décadas a “comer terra” como diria Miguel Torga e pela primeira vez vi um padre no final da celebração da missa a falar do defunto com um sorriso na boca e da alegria que foi ter conhecido tamanha figura, há muitos anos atrás, em Rio de Moinhos!
O Maior, pela sua actividade única (sem nunca ter pedido ou recebido subsídios), teve cartas de elogios (sapatadinhas nas costas) de governantes, foi notícia em tudo o que é jornais, revistas e canais de televisão.

O Maior chama-se Joaquim da Costa Azevedo e é meu AVÔ!
Não me dêem os pêsames, dêem-me os parabéns por ser neto do Maior! 

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