Luís Vaz, um jovem adulto a rondar os quarenta anos,
lembra-se perfeitamente de alguns episódios da pré-adolescência e adolescência,
com um sorriso. Lembra-se da admiração que ele e os amiguinhos tinham por outro
amigo, o Pedro Álvares, que quando se cruzava com uma miúda, como que por
milagre engrossava a voz como se já tivesse vinte anos, quando ainda só tinham
doze e com a voz aguda e melada, dizia: – Olá!
De seguida, para os amigos, recuperava a voz fina e
estridente e comentava: – Esta é que é boa!
Além do engrossamento de voz, outra característica que fazia
a geração de Luís Vaz parecer interessante aos olhos das meninas, era ter os
pais divorciados ou ter problemas com eles, e o píncaro do “puto” interessante
era juntar um amigo drogado aos restantes problemas familiares.
Mas como diz o ditado, e com razão, “És mais velho, és
interessante de outra forma!”, e se Luís Vaz quiser ser interessante, tem de…
Luís Vaz ia a caminhar pelo passeio, enquanto seus olhos
admiravam o lado rural que a cidade ainda mantinha, e a sua cabeça entretinha-se
a juntar letras e palavras. Este estado, muito natural em Luís Vaz, é
interrompido por berros a uma só voz e buzinadelas insistentes com o mesmo tom!
Todo esse ruído vinha do único carro que fazia a avenida,
com o seu condutor em fúria, espumando frases de indignação, pelo facto de ele
achar que o Eusébio deveria ir para o Panteão Nacional!
Ao reconhecer a “figura”, Luís Vaz faz sinal de paragem e
cumprimenta o seu amigo. Para o sossegar, comenta-lhe:
- Não te preocupes, Viriato, estão todos os partidos do arco
do poder de acordo, é provável que ele vá para lá! Eu até acho que ele deveria
ter sepultura no estádio da Luz!
- Então estás indignado?
- Não! – responde.
Viriato enlouquece novamente e arranca intempestivamente aos
berros e com buzinadelas.
Um pouco abalado, Luís Vaz para no primeiro café por onde
passa, para tomar um e tentar recompor-se. Já sentado, vem a empregada, de
sorriso cintilante e pergunta:
- O que deseja?
Não tendo coragem para dizer que a desejava, pede o
que lhe levou lá.
- Bom dia! Quero um café.
- O QUÊ?!!! SEU CAPITALISTA NEO-LIBERAL E FASCISTA! “EU
QUERO”, DIZES TU! SEU DESRESPEITADOR DA CLASSE OPERÁRIA!!!
Das mesas do lado, Luís Vaz, ouvia comentários das outras
pessoas, do estilo, “Miúda interessante, está aqui para servir mas não perde a
dignidade!”.
Sem saber como reagir Luís Vaz arrisca:
- Não se importa no exercício da sua função remunerada
tirar-me um cafézinho?
A empregada, neste momento transformada em diabo indignado,
mira-o por longos instantes e vai tirar o café.
Depois de servido apetecia-lhe uma bola de Berlim, que o
“namorava” do expositor. Mas, na sua mente, sem encontrar palavras de sentido
“uniquíssimo”, nem um modo que não desse azo a outras interpretações, decide
virar costas ao bolo.
Com o desejo a consumi-lo, vai a uma grande superfície
comprar um “pack” de quatro bolas de Berlim, sem correr riscos de ter de as pedir. Já na
caixa, sem nada dizer, para não correr riscos, apresenta o produto à espera que
a funcionária da caixa, de sorriso cintilante, lhe diga o preço. Em vez da
conta, ouve de forma indignada:
- SEU PORCO MALCRIADO E FASCISTA,…”
Das pessoas atrás da fila, ouvia, “Sim senhora! Está aqui
para servir mas não perde a dignidade!”.
Luís Vaz, atarantado, deixa dez euros na “caixa” e não
espera pelo troco, tamanha era a vontade que tinha de sair depressa dali. Já no
exterior da grande superfície, respira fundo. Quando desperta novamente para o
que o rodeia, ouve barulho de gente que protestava indignada contra a fome em África
e ao mesmo tempo fazia um peditório, patrocinado por ONG’s.
No meio desta balbúrdia, a pedir para combater a miséria de
África, transformada em festa ruidosa, a atenção de Luís Vaz recai para um
canto, onde está a Dona Ermelinda, senhora pobre, de cada vez mais parca
reforma, que em idosa teve que se sujeitar à humilhação da mendicidade. Luís
Vaz aproxima-se e partilha as bolas de Berlim com a dona Ermelinda. Ao serem
avistados, possessas, as pessoas indignadamente interessantes da
manifestação/peditório, vociferam-lhe:
- SEU VERME SEM PONTA DE INDIGNAÇÃO! SEU FASCISTA AMORAL!
FAZ ALGUMA COISA PARA ACABAR COM A FOME NO MUNDO!
Luís Vaz “afasta-se”, sem perceber a lógica destes tempos!
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