...
O tempo passa e quando
esta relação estava mais forte do que nunca, Narciso continuava a pregar uns
açoites a Adélio por tudo e por nada, a tragédia aconteceu.
Certo dia, o tio Narciso,
ao deslocar-se de manhã cedo na sua motorizada ao centro de emprego, é
surpreendido por um coelho que atravessa repentinamente a estrada. Para evitar
o atropelamento, Narciso trava a fundo e é projectado, indo embater com a cabeça
numa cabine telefónica, provocando-lhe um traumatismo craniano, faz ricochete e
cai sobre o ombro à beira da motorizada, partindo a clavícula. Neste momento, Narciso
abre os olhos e vê o coelho a ser atropelado por um camião na outra faixa da
estrada.
Quando chegam os
bombeiros, Narciso apenas se queixa das dores intensas no ombro, sendo depois tratado
no hospital apenas à fractura da clavícula. É mandado embora e dois dias depois…
morre em casa…vítima de traumatismo craniano.
Adélio Dani herda a Famel do tio, que escapou ao acidente sem um arranhão.
A alegria de Adélio Dani
em ter uma motorizada era superior à relativa tristeza de ter perdido o tio que
se tinha tornado o segundo pai. Acha-se o maior!
Como continuava desempregado,
um dos problemas de Adélio era dar de "beber" à motorizada para as suas
deslocações. Nas descidas desligava sempre o motor e quando entrava em estrada
plana deixava a Famel ir até onde o
embalo a levasse, e sempre que esta estava quase a parar, impulsionava o corpo
para a frente em movimentos contínuos para a fazer andar mais uns metros. Só
depois voltava a ligar o motor da motorizada, voltando o barulho e a fumarada a
sair pelo escape. Tanto barulho e fumo faziam com que todos olhassem para ele,
e a moral de Adélio Dani era tanta, tanta (superava a de Casanova) que pensava
ser a sua classe o alvo das atenções. Pensava que eles olhavam por inveja e
elas por fascínio.
A motorizada era a
alegria de Adélio Dani, até que três dias após ter herdado o motociclo, este
avaria à porta de casa, quando se preparava para ir brilhar pelas ruas de
Campanhã.
- Ó mamã, mamããããã!
E Dália aparece à porta
de casa.
- Que foi, filho?
- A “Graciosa” não pega!
- Hein?!!
- A motorizada! Não pega!
- E o que é que eu tenho
a ver com isso? – Pergunta Dália, encolhendo os ombros.
- Nada, até logo! – E
baixinho, diz: – Que mãe…como ela mudou!
Adélio Dani vai dar a sua
volta de motorizada, mas desta vez a empurrá-la. Ao passar na rua Joaquim Costa
Azevedo vê à entrada de uma garagem uma placa a dizer: “Neto, o vidente,
adivinha o passado e o presente”. Adélio Dani não se lembra, que quase vinte
anos antes tinha estado naquele mesmo local com os pais e o seu amigo de sempre, o Rubi. Decide entrar com a motorizada e vê um homem, já entradote na idade, a
acariciar as manetes de uma V50, de 1956.
- Bom dia! – Cumprimenta
Adélio.
- Bom dia! Estava à tua
espera! – Neto diz sempre isto quando entra alguém, para impressionar, e
continua: – As tetas da Laura na década de sessenta eram como estas manetes…
rijas. Que saudades… davam o melhor leite!
Confuso, Adélio Dani
pergunta – E quem era a Laura?
-Oh, a Laura! Era uma
vaca leiteira, que eu tinha no meu quintal…já morreu. Morreu enquanto lhe
tirava leite e viu a minha aliança. Morreu de desgosto, não sabia que eu era
casado! Sempre que lhe ia tirar o leite, tirava a aliança…mas naquele
dia…esqueci-me!
- Poça, que história triste! – Exclama Adélio Dani.
Neto prossegue: – E não é
tudo…depois a minha mulher descobriu porque é que a Laura morreu, deu-me uma
coça e morreu…
- De desgosto também? – Pergunta
Adélio.
- Sim. O desgosto
associado ao vinho que ela bebia, provocou-lhe uma cirrose…morreu trinta e
quatro anos depois!
- Hiiii, um mal nunca vem
só! – Sentencia Adélio Dani.
- Com a morte da minha
mulher aguentei bem, o vinho começou a dar para mais tempo. Comecei a dar umas
festas…agora, a Laura… Que saudades! – Diz Neto com um olhar distante.
- A vaca devia dar um
leite mesmo muito bom! – Adivinha Adélio Dani.
- E as tetas?! Ai, as
tetas da Laura! – Diz Neto, como se estivesse mergulhado num sonho.
De repente desperta,
desmonta da V50, senta-se à mesa que se encontra no meio da garagem e diz:
- Senta-te rapaz. O que
queres?
- A sua história é mesmo
triste…Pode ser um pão com manteiga!
- Ó meu, isto não é o
supermercado! Eu sou adivinho! Tu perguntas-me coisas que não sabes e eu
adivinho a troco de uma quantia em pecuniário ao teu critério, mas nunca
inferior a 0,5 €!
- Pode-se negociar o
valor mínimo? – Pergunta Adélio, porque não tem dinheiro com ele.
- É inegociável! – Diz
Neto, bastante firme.
- E pode-se deixar algum
bem material em vez de dinheiro? – Pergunta Adélio Dani.
- Única e apenas se esse bem
material tiver valor comercial. Estás a pensar em quê?
- Na minha motorizada… -
e sem Adélio Dani terminar, é interrompido por Neto:
- Ah, Ah, Ah! – Ri Neto
de forma teatral e continua: – Isso não vale 0,20 €, quanto mais 0,50 €!
E eis que então Adélio
Dani, num jogo psicológico de consequências imprevisíveis, pergunta:
- Ó Sr. Neto, mas já
reparou que tesos e rijos são os pedais da minha motorizada?
Neto levanta-se, dirige-se
para a motorizada, baixa-se e toca com as mãos nos pedais…rijos. Adélio
continua com o jogo psicológico:
- Eram assim as tetas da
Laura? Hein?
Neto começa a delirar e a
soltar frases soltas: – Ai as tetas…duras, como os bíceps da Cândida Branca Flor…ui,ui,ui. Laura, dá-me leite para o
pequeno-almoço…dei-te com um martelo na teta e ele empenou…múúúúúúúú,
esqueci-me de tirar a aliança…
Adélio Dani estala os
dedos, como vê os mágicos a fazerem na televisão. Neto volta à realidade e
exausto, vem a rastejar para a mesa e senta-se.
- Rapaz, a tua mota vale
muito dinheiro…
- Quanto? – Pergunta
ansioso, Adélio Dani, sem ter deixado Neto terminar.
- Pá, assim ao primeiro
toque, mais de 1 €! Quem diria!
- Eh pá, boa! Então já
lhe posso contar o meu problema? – Pergunta Adélio Dani.
- Sim, agora que estás
financeiramente calçado, podes desabafar! O que te traz por cá?
- Ó Sr. Neto, eu herdei
esta motorizada há três dias e tenho rolado todos os dias sem problemas, mas
hoje de manhã ela não pegou! Estranho, não é?
- Pode ser…ou não ser,
eis a dúvida!
Neto levanta-se da mesa,
dirige-se à motorizada de Adélio Dani e abana-a, de seguida põe-se em cima de
uma das motorizadas encostadas na sua garagem e começa a acariciar o depósito
de combustível. Neto entra em estado de transe…Adélio Dani assiste, assustado!
Terminado o estado de
transe, que durou tempo suficiente para Adélio Dani fazer chichi nas calças, Neto regressa à mesa, e:
- Rapaz, tenho uma
pergunta a fazer-te, para confirmar uma forte suspeita!
- Pergunte! – Diz Adélio
Dani, ainda meio assustado!
- Desde que andas na tua
motorizada, alguma vez meteste combustível?
- Ufa, essa é fácil! Não,
ainda não meti. É preciso? – Pergunta Adélio Dani.
- É provável, se queres
andar em cima dela… e só não digo que sim, porque há um boato de que existe uma
motorizada-chimpanzé nas selvas de África que anda sem combustível! Se há a
hipótese de haver uma que anda sem combustível em África, por que razão não
pode haver uma motorizada-palerma que ande sem combustível em Campanhã?! Como
te disse, pode ser…ou não ser!
- E??
- E?? Paga. - Diz Neto.
- Sem dinheiro?
- Deixas a motorizada.
- E??
- E… Levantas-te e
vais-te embora com cara de nabo!
- Isso é fácil. – Diz
Adélio Dani.
Assim fez, colocou a sua
melhor expressão de nabo, levantou-se e abandonou o estabelecimento do Neto. Já
na rua e enquanto se dirige para casa, Adélio Dani pensa:
“Agora que já sei a possível
causa raiz da avaria do meu motão, e agora que tenho a certeza que fiquei sem
motão, e com a certeza de que estou há muito tempo sem ocupação…tenho que
pensar na minha vida!”
Chega a casa por volta do
meio-dia e recolhe-se no seu quarto. Pensa, pensa e ao fim de cinco minutos já
dorme e sonha, sonha!
É um novo dia e Adélio
Dani está decidido a pôr em prática tudo aquilo com que sonhou.
(continua)
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