terça-feira, 8 de setembro de 2015

Je suis Anjinho

Bem cedo, antes das oito da manhã, saio de casa. Destino? O costumeiro de segunda a sexta, o local de trabalho. Antes disso alguns procedimentos e  reacções habituais sucedem-se, começando pelo tocar do despertador, de seguida odeio-o por isso durante breves segundos, mas sem nunca me passar pela cabeça “desfazê-lo”, apenas por não me agradar, levanto-me e tomo o pequeno almoço. Até aqui, tudo dentro da legalidade, até ao momento em que saio de casa… continuo com o velho hábito conservador de trancar a porta e manter a minha casa protegida!
Como ando “desalinhado” da corrente imposta do “És Adulto Mas Tens Que Continuar a Acreditar no Pai Natal”, estou identificado pela PPC (Polícia do Politicamente Correcto), como prevaricador e tenho um agente à porta de casa a vigiar-me, como se deviam vigiar terroristas, a obrigar-me a cumprir a lei…ou seja, deixar a porta aberta, com consequências severas, mas só para mim, cidadão comum!
Ao final da tarde, no regresso a casa, ao passar junto da estação dos comboios, vejo um grupo de cidadãos romenos, adultos e crianças, daqueles que “trabalham” e lutam por uma vida melhor, mendigando e roubando, passando esse saber secular aos mais novos. Apesar de tudo, o meu sentimento “Tuga” de anjinho e de comiseração pelos desgraçados, fez-me soltar um condescendente, “Coitadinhos!”.
Chego a casa, estaciono, saio do carro e o agente da PPC olha-me como se olha para um malandro. Para não deixar dúvidas levanto o braço onde tenho um saco com algumas compras e digo-lhe, a medo, “Paguei tudo!”.
A única coisa boa de sair de casa e deixar a porta aberta é que quando chego não tenho trabalho a abri-la…nem os outros.
Entro e pouso as compras na cozinha. Vou para a sala e encontro um grupo, homem, mulher e crianças, todos morenos e feições bem diferentes das dos “meus”. O “à vontade” do grupo era tão grande, numa casa que não era a deles, que pensei que era a família do meu primo José Alberto, que ficam todos muito morenos no Verão. Perspicaz como sempre sou, para tirar dúvidas, disse – Ó José Alberto, tira os pés todos sujos de cima do sofá!
Perante a falta de resposta, noutro golpe de perspicácia, pensei, “Este não é o meu primo. E aquela mulher e as meninas, com lenço na cabeça, não são a mulher e as filhas!”
Nos tempos em que trancava a porta de casa, só lá entrava quem eu convidava e havia regras, em que eu tinha o dever de ser hospitaleiro e o convidado tinha que respeitar três regras básicas - não alterar a decoração de casa, não parti-la e respeitar quem lá vive…de resto, toda a diversidade era bem-vinda.
Ainda com alguns resquícios desses tempos, em que o meu sobrinho dentro de minha casa tirava o chapéu, pedi à senhora e ás meninas que tirassem o lenço. Gritaram coisas que não percebia e o homem atirou-me um bibelot, muito bonito, que tinha comprado no dia anterior, que só não me acertou na cabeça, graças à minha boa esquiva.
Saí de casa e contei o sucedido ao agente da PPC, que me respondeu – Claro, você insultou-o! Merecia era levar com uma pedra no meio da testa. A sua sorte é que são boa gente!
Regressei para dentro e com o passar do tempo sentia-me cada vez mais um estranho em minha casa. Os meus amigos deixaram de aparecer, primeiro aqueles que gostavam de falar livremente e com o tempo, todos os outros, não aguentando a aplicação da sharia (em minha casa) impondo comportamentos medievais e o tratamento subalterno dado ás mulheres da família lá instalada.
Queimaram os meus livros, partiram a televisão e o meu rádio, coisas do diabo! Agora passo o tempo a observá-los e a trabalhar para lhes dar de comer…é a vida!
A mulher deu novamente à luz, um rapaz, a alegria suprema do pai, já que as filhas eram peças acessórias usadas apenas para o servir! O agente da PPC, apressou-se a dizer que como a criança nasceu em minha casa, a minha casa ia passar a ser dela também.
- Vai ser educada por mim, segundo os Direitos Humanos Universais? – pergunto, para me certificar que a criança iria ter uma educação que validasse o sentimento de pertença ao sítio onde nasceu.
- Nem pensar, é árabe e muçulmano e vai ser educado de forma intolerante, como se vivesse na “casa” dos pais dele! – responde o agente.
Desgastado, vou para a varanda ver quem passa e avisto um amigo de infância, o Alain, que saúdo, com uma abordagem jovem:
- Olá Alain, tudo baril?
Antes de ouvir a resposta do meu amigo, sou puxado para dentro da sala pela família invasora, que me grita em uníssimo:
- TU DISSESTE QUE ALÁ É UM BARRIL??!!!

Sem direito a defesa fui condenado a mil chicotadas, aplicadas em suaves doses de cinquenta por semana…porque é tudo boa gente!
Je suis Anjinho,nous sommes Anjinhos!

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